Com mais de 40 anos de segregação racial estampados na história, a África do Sul investe em ações afirmativas para acabar com a exclusão social e construir a nação arco-íris idealizada por Mandela

Por Renata Galvão, da Cidade do Cabo

Com o fim do apartheid, o país sul-africano passou a investir mais em educação e hoje é o dono do maior PIB voltado para a área entre todas as nações do Brics: 5,4% do índice atingido anualmente

O iminente avanço econômico, que propiciou à África do Sul se unir no ano passado ao Brasil, Rússia, Índia e China na composição do grupo dos Brics, não é o suficiente para garantir o salto necessário para o desenvolvimento do país pelas vias da educação. O grande esforço das políticas sul-africanas segue então o caminho das ações afirmativas para incluir mais pessoas no ensino superior e superar o sistema de desigualdade social, fortemente agravado durante as décadas do apartheid, e que levou menos de 2% do total da população sul-africana a frequentar uma universidade.

Entre os jovens de 18 a 24 anos, no entanto, o percentual de participação no ensino superior sobe para 16%. O índice é referente a 2007 e consta em relatório elaborado pelo Conselho de Educação Superior na África do Sul (CHE), com dados especialmente das universidades públicas, pois até então as informações referentes às instituições privadas ainda não eram sistematicamente coletadas. A meta do governo, estipulada em 2001 pelo Plano Nacional de Educação Superior do país, é aumentar o acesso de jovens numa graduação para 20% até 2014.

Ao contrário do Brasil, que encontrou nas cotas raciais uma resposta para o déficit da participação negra no ensino superior, a África do Sul, em geral, é extremamente relutante em aceitar a distinção por raça, justamente por contrariar os princípios da luta contra o antigo sistema de segregação. Assim, mesmo que a decisão de adotar políticas afirmativas esteja nas mãos de cada instituição de ensino, e não do Estado, a maior parte delas nega o sistema de cotas por considerá-lo racista e, ao invés disso, aplica programas que facilitam a entrada de estudantes desfavorecidos economicamente.

A busca pelo equilíbrio no cenário multirracial do país pode ser comprovada em números. Ainda de acordo com o documento divulgado pelo CHE, que monitora a educação superior na África do Sul, em meados de 1993 mais da metade dos estudantes universitários eram brancos e cerca de 40% eram negros. O relatório revela, no entanto, que em 2005 houve uma reversão nesse índice, passando para 25% a participação da população branca e 61% de negros presentes no ensino superior. A estatística acompanha a realidade populacional do país, onde 79,5% da população é de cor negra.

Remodelação
Em parte, esse equilíbrio pode ser associado à mudança política no país. O fim legal do apartheid, em 1994, também decretou a unificação do sistema de ensino superior, até então separado por raças (veja quadro na página ao lado). O número de universidades públicas passou de 36 para 23, numa estratégia que mirou a diversificação mais rapidamente dos estudantes presentes nas instituições. “A ideia foi a de unir universidades negras e brancas que ocupavam a mesma região tornando-as uma única instituição inclusiva”, explica o chefe executivo do CHE, Ahmed Essop. Segundo ele, com um número menor de instituições, a mudança também propiciou ao governo maiores investimentos em cada uma delas.

A modificação no cenário da educação superior ocorreu durante toda a década de 1990 e permanece até hoje. Das 23 instituições de ensino superior públicas, 11 delas são universidades tradicionais, que oferecem graduações orientadas para a teoria; seis instituições de tecnologia, com cursos mais voltados à prática e de vocação técnica;  e seis instituições denominadas como abrangentes, pois oferecem os dois tipos de qualificação. Ainda compõem o sistema outras 115 instituições de ensino superior privadas. Dessas, 88 são registradas e 27 possuem um registro provisório de funcionamento.

Apesar de haver muito mais instituições particulares do que públicas, a população acadêmica é bem menor naquelas. Isso porque a Autoridade de Qualificação Sul-Africana (SAQA), órgão federal responsável pela regulação do setor, determina que o sistema privado somente pode oferecer cursos de formação profissional – os quais seriam equivalentes aos tecnológicos no Brasil. Além disso, o perfil das instituições privadas é de pequeno porte e mais voltado para as áreas de negócios, comércio e tecnologia.

Pode-se dizer, porém, que o crescimento da oferta de ensino superior no país está bastante atrelado ao setor privado, que teve um aumento no número de instituições de 25% desde 2008, enquanto as universidades públicas não abriram nenhum novo campus no período. Na análise do diretor de Negócios do Intec College, Phillip Slatter, os cursos do setor particular também foram os principais responsáveis pelos profissionais que atuaram na Copa do Mundo 2010, sediada na África do Sul. Com um currículo voltado para o mercado, a formação nessas instituições ocorre em apenas dois anos permitindo atender mais rapidamente às demandas profissionais do país.

Seja de caráter público ou privado, o ensino superior na África do Sul é custeado pelos próprios alunos que pagam uma taxa média anual de 13 mil a 15 mil rands (R$ 3,2 a R$ 3,7 mil). Com isso, outro dado que preocupa o governo do país é a evasão, que chega a 45%. Um estudo divulgado pelo Conselho Nacional de Pesquisa em Ciências Humanas (HSRC) verificou que o grupo de risco para taxa de abandono são os estudantes pobres e negros. “O histórico social e financeiro desvantajoso é a principal causa, por isso é necessário aumentar o investimento governamental de bolsas de estudo”, afirma Essop, do Conselho de Educação Superior.

Atualmente só existe um programa de empréstimo para estudantes, o chamado National Student Financial Aid Scheme (NSFAS), que ajuda mais de 140 mil alunos a cada ano. Ao provar um histórico de desvantagem econômica, o estudante tem todas as despesas pagas e o reembolso do valor concedido é obrigatório somente aos jovens que conseguirem um emprego depois de formados.

Apesar de o país possuir um dos números mais altos de desemprego entre jovens do mundo (48%), a parcela da população que possui ensino superior costuma conseguir emprego rápido, especialmente porque o mercado sul-africano está em fase de crescimento. Em 2007, o NSFAS conseguiu recuperar 616 milhões de rands (R$ 154 milhões) com o pagamento de empréstimos educativos. Mas nem todos têm a sorte de sair da universidade com a carteira assinada, e 35% dos beneficiados pela bolsa não conseguem devolver os valores recebidos.

O alto número de inadimplência levou o governo do país a promover mudanças nas regras do empréstimo. Em agosto do ano passado, o ministro da Educação Superior, Blade Nzimande, declarou que o programa passará a dar um prazo de um ano, sem adição de juros, até que o beneficiado começasse a pagar o empréstimo concedido. Além disso, no início de 2011 o ministro das Finanças do país, Pravin Gordhan, anunciou um investimento anual de 3,6 milhões de rands (R$ 900 mil) no NSFAS até 2014, para conceder novas bolsas.

Contrapartida particular
Por outro lado, o governo aproveita para fomentar a participação das instituições privadas no ensino superior. O Plano Nacional de Educação Superior sul-africano também estipula mais investimento para essas instituições, que são vistas como uma boa solução para atender o crescimento do mercado de trabalho no país.

Mas, se por um lado a grande demanda de mercado faz com que não haja predileção na contratação de estudantes oriundos do ensino público ou privado, por outro são os próprios estudantes que tendem a preterir as instituições particulares preferindo a formação nas públicas. O movimento de rejeição do ensino privado é analisado pela pesquisadora chefe em desenvolvimento humano do Human Sciences Research Council (HSRC), Glenda Kruss, no livro Educação privada no ensino superior na África do Sul (em tradução livre). A publicação analisa o histórico e as mudanças do investimento particular na educação, que desde 1994 – quando passou a ser reconhecido pelo governo pós-apartheid – luta para garantir um espaço maior no cenário superior sul-africano.

De acordo com Glenda, o problema é datado de 1990, quando ocorreu o boom do cenário particular e não houve uma rápida contrapartida do governo para criar um sistema de regulação. “E quando o governo criou o South African Qualifications Authority (SAQA), o órgão não estava preparado para o tamanho da tarefa. Assim, instituições privadas ficaram tachadas como ruins e as públicas como boas”, avalia.

Outra razão para o descompasso entre os setores público e privado de ensino superior está na propaganda governamental divulgada à época, que mostrava as instituições públicas comprometidas com a formação de profissionais para uma sociedade democrática, enquanto as privadas seguiam uma linha mais empresarial nos seus currículos. O processo de abertura das instituições particulares, no entanto, não é simples. É preciso submeter o currículo e plano de ensino às regras preestabelecidas pelo SAQA, o órgão responsável pela regulação do ensino superior no país. Depois de aprovado, num processo que pode demorar mais de três anos, a instituição passa a ter um registro provisório e, dependendo do seu desempenho nos próximos dois anos, recebe o registro permanente ou é fechada. Conforme dados do CHE, em 2007, 443 escolas entraram com pedido de regularização, mas somente 114 foram aprovadas.

“Existe mais espaço para a educação privada, mas a qualidade dos cursos precisa melhorar”, opina Glenda. Segundo a pesquisadora, muitas instituições com currículos confusos e de má qualidade, que procuram lucrar com o público de baixa renda por oferecer formação de baixíssimo custo, ajudam a manter a má reputação, dificultando o reconhecimento e crescimento do setor.

Demanda a distância
O sistema de educação a distância é uma outra alternativa à ampliação do ensino que tem chamado a atenção do governo na África do Sul. A EAD tem sido cada vez mais a opção de jovens que precisam trabalhar e ao mesmo tempo querem aperfeiçoar seus conhecimentos por meio da EAD. Na opinião de Phillip Slatter, o sucesso do modelo também é atribuído a sua maior abrangência, permitindo alcançar alunos em áreas rurais do país, onde não há acesso a universidades presenciais.

A expansão do modelo ficou relegada ao setor privado, enquanto coube ao governo a responsabilidade de regulamentar e avaliar os cursos. Para isso criou em 2001 o Conselho de Qualidade para Educação a Distância e Treinamento (Umalusi, na sigla original). Desde 2003, 17 instituições de ensino superior privado oferecem graduação para cursos profissionalizantes a distância nas áreas de negócios, economia e comunicação. Hoje em dia, cerca de 54 mil alunos estão matriculados em algum curso de EAD.

O êxito dos programas de educação a distância fez com que o governo passasse a estudar a ampliação desse modelo com o apoio das universidades públicas. Hoje, apenas uma dessas instituições oferece EAD. Para tanto, no início deste ano o Departamento de Educação Superior e Treinamento do país publicou um documento que apresenta a proposta de unificar o sistema de regularização da educação a distância, a Umalasi, com a SAQA. Em declaração oficial emitida em março deste ano, o ministro de Educação Superior e Treinamento sul-africano, Blade Nzimande, explicou que o objetivo é oferecer um suporte mais organizado para o desenvolvimento progressivo do ensino a distância no país.

 

Uma década de mudanças

Mesmo antes de o apartheid ser declarado inconstitucional pelo presidente Nelson Mandela, algumas universidades, como a de Witwatersrand, já protestavam contra o regime de exclusão

Mesmo com todas as mudanças, o ensino superior sul-africano ainda tem raízes em 1953, ano em que foi aprovada a lei Bantu Education Act. Ela definiu a organização do sistema educacional na África do apartheid – regime político adotado em 1948 e que privou a população negra de sua cidadania. Na época, todos os serviços públicos eram segregados e aos negros restavam serviços de qualidade inferior. No caso da educação superior, as universidades para “brancos” recebiam a maior parte dos investimentos do governo, tinham melhor infraestrutura e localização privilegiada. O regime durou até o início da década de 1990, mas foi somente em 1994, com a chegada de Nelson Mandela a presidência do país, que o apartheid se tornou inconstitucional. A redemocratização do sistema educacional começou com a unificação das instituições de ensino superior “negras” e “brancas”. O chefe executivo do Conselho de Educação Superior na África do Sul (CHE), Ahmed Essop, pondera, no entanto, que essa realidade terminou ontem. “Nós ainda estamos lutando para compensar esses anos de carência”, resume.

 

 

África  do Sul entre as 150 melhores universidades do mundo

A Universidade da Cidade do Cabo, que já foi palco da discriminação, reverteu o cenário de exclusão sem se sujeitar a políticas de inclusão racial

Fundada em 1829, a Universidade da Cidade do Cabo (UCT) é a mais antiga do país e considerada a melhor de todo o continente africano. Em 2012 ela chegou à posição 103ª no ranking da Times Higher Education (75 posições acima da USP). Antigamente parte de um cenário de segregação extrema, a UCT é hoje a universidade sul-africana que mais investe em políticas de inclusão: dos 22,5 mil alunos, 35% são brancos e 65% negros. Além disso, 19% dos universitários são internacionais, o que deixa a instituição acima da média nacional de 8% de participação estrangeira. Entre os projetos da UCT está o Aspect Programme, voltado para estudantes com um histórico de desvantagem educacional. O programa facilita o ingresso desses jovens e dá suporte emocional e de conteúdo, a fim de combater a carência de aprendizado. Sendo assim, os estudantes que entram no curso de engenharia por meio do programa completam a graduação em cinco anos, e não quatro como na maioria das faculdades.