Por Marcia Augusta Marinho Petrone

As tecnologias de informação e comunicação (TICs), já há algumas décadas, passaram a fazer parte do cotidiano de um número cada vez mais crescente de pessoas. A comunicação, cada dia mais ágil e diversificada, promove múltiplas maneiras de interação, tanto interpessoal quanto entre pessoas e entidades, organizações e instituições governamentais e não-governamentais. Com a educação, não poderia ser diferente, e as TICs apresentam-se não apenas como alternativas, mas como importantes ferramentas, por vezes fundamentais, ao processo de aprendizagem em praticamente todas as áreas do saber. A partir dessa realidade, urge compreender que é possível uma real ampliação do espaço da educação formal, possibilitando que os saberes necessários ao conhecimento se dêem muito além dos muros das escolas.

Entretanto, parece que ainda existe uma má compreensão, geradora de eventuais preconceitos com relação a tais tecnologias, à medida que elas se desenvolvem em um ambiente virtual. Por comumente ser o virtual posto em oposição ao real, têm-se a impressão de que o uso das TICs em suas múltiplas funcionalidades, em particular no ensino a distância (EAD), apresentariam um déficit ontológico, que resultaria em um inevitável desgaste epistemológico, como se o ensino não fosse real, mas, dentro da já citada comum oposição, “apenas” virtual.

Para desfazer tais concepções, será muito útil explanar o pensamento de Pierre Lévy quanto ao que é o virtual. Para o referido autor, o virtual é erroneamente tido como ilusório e sem existência,  porém essa abordagem é tão-somente uma parte do que se refere a esse termo. De fato, virtual, derivado do latim virtus (“força”, “potência”), opõe-se ao atual: “A árvore está virtualmente presente na semente”. E, ainda, a diferença entre possível e real é a “falta” de existência do primeiro. “O virtual é como o complexo problemático”, noção inferida de: “virtualidades inerentes a um ser, sua problemática, o nó de tensões, de coerções e de projetos que o dominam, as questões que o movem, são uma parte essencial de sua determinação”. Enfim, o virtual é real, pois existe sem estar presente.

Ao tratar especificamente da virtualização do texto, Lévy deixa claro que tal processo implica uma prestação de serviço ao leitor (no caso, ajudá-lo a navegar no ciberespaço) e “é o melhor meio de ser reconhecido sob o dilúvio informacional”. Além disso, quanto à virtualização da economia, a informação ressurge classificada como sendo definitivamente desterritorializada. Sem dúvida, “o conhecimento e a informação não são ‘imateriais’, mas são desterritorializados,longe de estarem presos a um suporte privilegiado, eles podem viajar. Mas, tampouco, são ‘materiais’!”. Logo, “são da ordem do acontecimento ou do processo”. Ainda, a informação, por ser virtual, permite que seu consumo não seja destruído nem sua posse, exclusiva. Dessa forma, quando recebo uma informação, interpreto-a com base em outras já adquiridas, quer dizer, “atualizo-a”. Efetuo, portanto, um ato criativo, produtivo.

Ao desvendar, ao seu modo, o processo de virtualização, fica claro para Lévy que este “é o movimento pelo qual se constitui e continua a se criar a nossa espécie”. Portanto, não há o que temer, apenas devemos nos readequar a esse “momento de grande desterritorialização” e facilitar o acontecimento de “uma virtualização requalificante, inclusiva e hospitaleira à virtualização pervertida que exclui e desqualifica”.

Aliado a  essa nova concepção do mundo virtual e cibernético em que se desenvolvem as TICs, será preciso rever o sentido de educação em um mundo complexo como o que vivemos hoje, conforme Lévy também nos assevera, ao afirmar que “em todo lugar para onde dirigimos nosso olhar com acuidade e perseverança suficientes, o mundo no qual vivemos se revela complexo”.

No âmbito da educação, tal conceito de complexidade torna-se ainda mais claro quando cotejado com as considerações de Edgard Morin sobre os Sete saberes necessários à educação do futuro. Nessa obra, encomendada pela UNESCO, o referido autor apresenta como saberes indispensáveis a serem ensinados às cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão, os princípios do conhecimento pertinente, ensinar a condição humana, ensinar a identidade terrena, enfrentar as incertezas, ensinar a compreensão e a ética do gênero humano. Particularmente, quando trata dos princípios do conhecimento pertinente, podemos ampliar muito a responsabilidade da educação e dos saberes menos fragmentados para as soluções do dia-a-dia. O cidadão do novo milênio deve ter condições de problematizar o acesso às informações sobre o mundo e a possibilidade de articulá-las e organizá-las, percebendo e concebendo o contexto, o global, o multidimensional e o complexo.

O multidimensional é apresentado como propriedade de unidades complexas, como o ser humano ou a sociedade. Assim, “o ser humano é ao mesmo tempo biológico, psíquico, social, afetivo e racional. A sociedade comporta as dimensões histórica, econômica, sociológica, religiosa […]”. A definição apresentada para complexo vem do latim complexus, que “significa o que foi tecido junto”. Quando elementos diferentes são partes constitutivas de um todo e, ao mesmo tempo, indissociáveis, além de um tecido interdependente que interage e inter-retroage entre aquilo que é objeto de conhecimento e o seu contexto, as partes e o todo e vice-versa, bem como as partes entre si, aí temos a complexidade, que é a união entre a unidade e a multiplicidade.

Diante da necessidade de pensar a educação como elemento transformador dessas reduções e compartimentalizações do saber que tanto têm empobrecido o conhecimento, a EAD, utilizando-se dos instrumentos fornecidos pelas TICs, torna-se ferramenta poderosa, com a finalidade de possibilitar, até mais do que a educação formal, a desterritorialização do conhecimento e da informação, apropriando-se do caráter nômade que a virtualização concede à cultura, reinventando-a.

Dessa forma, urge repensar não apenas a EAD, mas também a educação à luz da realidade de que o conhecimento não é fragmentado, mas interdependente, interligado, intersensorial. O professor, quer seja no âmbito presencial quer seja a distância, necessita assumir um papel diferenciado diante das múltiplas formas de processar a informação. Segundo Maseto e Behrens, “dependendo da bagagem cultural, da idade e dos objetivos pretendidos, predominará o processamento seqüencial, o hipertextual ou o multimídico”, considerando-se que, na sociedade atual, em razão da necessidade cada vez maior de rapidez para o enfrentamento das situações cotidianas, predomina o processamento multimídico ou hipertextual, em detrimento do lógico-seqüencial. Isso não é intrinsecamente mal ou bom, mas carece de uma compreensão para que não se valorize a forma de informação inadequada ao contexto.

Ao professor, cabe a compreensão de como aprendemos e que “aprendemos mais, quando conseguimos juntar todos os fatores: temos interesse, motivação clara; desenvolvemos hábitos que facilitam o processo de aprendizagem; e sentimos prazer no que estudamos e na forma de fazê-lo”. Muda no papel do professor, acima de tudo, “a relação de espaço, tempo e comunicação com os alunos. O espaço de trocas aumenta da sala de aula para o virtual. O tempo de enviar ou receber informações amplia-se para qualquer dia da semana. O processo de comunicação se dá na sala de aula, na Internet, no e-mail, no chat, no fórum”.

Consultado o documento sobre os Referenciais de Qualidade para a Educação Superior a Distância, de agosto de 2007, apresentado pela Secretaria de Educação a Distância do Ministério da Educação (SEED/MEC), afirma-se que a educação deve ser fundamentada primeiro, antes de se pensar o modo de organização, no caso, a distância, sem, entretanto, deixar claro qual o conceito de educação pensado. Cita compromissos institucionais, projeto político pedagógico e trata de interdisciplinaridade e contextualização, aproximando-se dos argumentos de Morin quanto à necessidade de apreender a realidade em múltiplas dimensões e com conteúdos que se interpenetrem e se combinem, mas tudo se apresenta muito difuso e lançado de forma quase genérica.

No entanto, os maiores problemas se dão quando as definições de tutor, professor tutor, corpo de tutores e equipe multidisciplinar se confundem. O conceito de tutor aparece, por exemplo, separado do de professor.  O texto sugere um corpo docente e um corpo de tutores (equipes e funções diferentes?). Professores aparecem como responsáveis “pela coordenação do curso, pela coordenação de cada disciplina do curso, pela coordenação do sistema de tutoria e outras atividades concernentes”. Essas incoerências e distorções do papel do tutor, ora como professor, ora com um novo elemento não-docente, apenas revela o quanto a educação, não só a distância, parece ainda não ser compreendida em sua dimensão contextual e complexa.

Em busca do significado do termo “tutoria”, em dicionários variados, como o de José Pedro Machado, encontram-se as acepções: Tutor – do latim tutor, -is = defensor, protetor, guardião, curador. Ou ainda, função ou autoridade de tutor; exercício da tutela;    administração de negócios públicos ou particulares; superintendência, governo, direção; ação de preservar, proteger alguém ou algo de outro alguém ou algo; defesa, amparo, tutela; o efeito dessa ação.

Ora, o real valor da educação e a considerar, também, na modalidade a distância, está na concepção de aprendizagem, que precisa ser reinterpretada à luz dos saberes multidimensionais e na compreensão do potencial que as atividades oportunizadoras propiciam ao seu processo. Haverá necessidade de uma equipe multidisciplinar (agentes educativos com saberes diferentes), que é citada no documento, mas sem a especificidade e objetividade necessárias na definição de seus reais papéis.

Tal equipe deve ser pensada e estruturada independentemente do projeto da escola, contando com autores de acordo com suas concepções em torno dos conteúdos a serem estudados, com material didático coerente e que torne palpável o saber desses autores, com ambiente de aprendizagem que, preferencialmente, contenha um sistema de gestão dos objetos de estudo e dos participantes dos cursos e com profissionais de Teorias de Aprendizagem, Teoria de Sistemas,  Teoria de Informação e Teorias do Conhecimento, sabedores de todos os aspectos tecnológicos que serão utilizados, de processos e diferentes estilos de aprendizagem, de diferentes metodologias de pesquisa e orientação na busca de informações e sistematização do conhecimento, bem como dos processos administrativos, financeiros e logísticos que suportam a ação educativa.

Em síntese, talvez seja um viés diferenciar o papel do professor no processo de aprendizagem com nomenclaturas que levem à distorção de atividades e novas normas ou planos para a atividade docente. Não há professor tutor. Seria um exagero colocá-lo na função de direção, superintendência, proteção, defesa, amparo ou tutela de “alguém”. Uma equipe inteira deve ser igualmente responsável pelo planejamento, implantação, acompanhamento e avaliação de todas as situações que direcionem os participantes para o êxito da aprendizagem. E se a nomenclatura mais apropriada e coerente  for a de tutoria, o adequado será pensar em atividades de tutoria.

O referido documento carece, portanto, de tratamento mais criterioso, em relação aos conceitos expostos, de uma união dos setores do MEC, para que tanto as equipes da educação presencial como as da educação a distância, incluindo-se as de educação especial, produzam idéias orientadoras coerentes, de forma multidisciplinar, contemplando o contexto, o global, o multidimensional e o complexo inerentes a uma educação pertinente e capaz de fornecer condições para o educando compreender o mundo em que vive e com ele relacionar-se não de forma fragmentada e parcial, mas plena e integral.

Marcia Augusta Marinho Petrone é pedagoga e psicopedagoga, especialista em gestão empresarial e marketing e consultora educacional pelas empresas Asserção Organizacional e Triunfus & Triunfus Virtual – Educação e Tecnologia

O virtual é real