A cada início de ano letivo, voltam à tona as reclamações de donos de estabelecimentos de ensino. É cada vez maior o número de escolas, muitas delas, tradicionais, que enfrentam dificuldades administrativas. Algumas delas, inclusive, não resistem à crise de mercado e terminam por fechar as portas. Um fenômeno que acontece no Rio de Janeiro e também em outras praças do país.

 

O tema é alvo de estudos do Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior no Estado de São Paulo (Semesp). Nesta entrevista, o presidente da instituição, professor Hermes Ferreira Figueiredo, fala das possíveis causas para o aumento do índice de inadimplência nas instituições de ensino superior – que no ano de 2006 alcançou a marca de 23,2% na capital. Considerando-se estabelecimentos da Grande São Paulo o índice foi ainda maior – chegou a 30%.

 

Para o professor, um dos motivos principais desta crise é a Lei Federal Nº 9870/99, conhecida popularmente como a “lei do calote”. Confira a entrevista a seguir:

 

FOLHA DIRIGIDA – De acordo com os dados do Semesp, o índice de inadimplência no ensino superior no ano de 2006 em São Paulo foi de 23,2%. Esse número é superior ao de 2005? A inadimplência vem crescendo?

 

Hermes Ferreira – O índice do ano 2006 é 0,8% superior ao de 2005. Nos anos de 2002 e 2003 houve uma queda, logo depois ficou estável em 22%. Agora esse índice subiu para 23,2%, o que nos surpreendeu. Imaginávamos que o Programa Universidade para Todos (ProUni) e o Fies, ambos do governo federal, atenderiam a uma grande parcela da população de menor poder aquisitivo. Entendíamos que essa camada da população era um grande componente da inadimplência num contexto geral – devido a incapacidade financeira de honrar alguns compromissos.

 

Qual a principal causa da inadimplência? O aumento da mensalidade ou a tolerância da lei, conhecida como lei do calote?

 

O aumento da mensalidade está excluído. Nos últimos três anos ela sofreu um arrefecimento e, desde o ano passado, tem havido baixa nos valores das mensalidades. Até mesmo pelo aumento do número de instituições de ensino superior e cursos oferecidos, o que gerou maior competitividade. Há dez anos existiam cerca de 800 instituições de ensino e hoje temos 2.300. São quase os mesmos alunos divididos ou pulverizados por um maior número de estabelecimentos de ensino. E isso forçou uma revisão nos cursos e replanejamento financeiro das instituições, para adequar-se à concorrência e principalmente às condições financeiras da classe C, que estava praticamente toda assistida. E agora, nas escolas particulares, começam a ingressar alunos da classe D e alguns da E.

 

A não empregabilidade do aluno ou a perda do emprego de algum membro da família sempre causa um desequilíbrio financeiro familiar. Que reflete no não cumprimento dos compromissos financeiros com a escola. O aluno tem prioridades mais urgentes – como alimentação, aluguel, transporte entre outras. Geralmente são contratos que têm datas para serem honrados, o aluguel, equipamentos, carros e etc. Nessa ordem a escola acaba ficando em segundo plano, pois não temos nenhum instrumento para forçar o aluno a ser pontual. A Lei Federal Nº 9870/99 resguarda o aluno inadimplente, dando a ele o direito de continuar os estudos sem nenhum prejuízo pedagógico ou administrativo até ao final do semestre, ou ao final do ano letivo, conforme o regime acadêmico de cada instituição. O que dá uma certa tranqüilidade ao estudante. Temos dificuldades em saber quais são os reais motivos para essa inadimplência ser tão alta. É três vezes maior que os índices de outros setores – créditos pessoais de bancos e carnês de lojas, por exemplo. Não sabemos afirmar se é única e exclusivamente por questões econômicas e financeiras da família. Acreditamos que grande parte se vale da proteção que é dada pela lei.

 

A mensalidade é a principal fonte de renda para as universidades se manterem? Muitos educadores defendem o apoio do governo para as instituições privadas. O senhor acha que cabe ao governo financiar este segmento, já que ele atende a grande parte da população?

 

A mensalidade é a única fonte de renda – exceto nas universidades que possuem alguma linha de pesquisa e podem ter alguma verba de fomento. Porém, a verba é usada na própria pesquisa para qual foi destinada. Não gera nenhum superávit para a instituição. Ao contrário, os professores são sempre mantidos pela instituição. Geralmente, as agências de fomento à pesquisa incentivam através do fornecimento de materiais para a pesquisa e infra-estrutura com laboratórios específicos. Entretanto, o professor continua na folha de pagamento da instituição de ensino. A pesquisa não gera lucro, gera novos conhecimento.

 

Não entendemos que o governo deva financiar o segmento como empresa. Ele deve oferecer linhas de financiamento para facilitar o ingresso do aluno no sistema privado através da bolsa de estudo, como é o caso do ProUni. Em São Paulo o governo do estado oferece uma bolsa em dinheiro e o aluno escolhe onde quer estudar. Em troca o aluno presta serviços à comunidade nos finais de semana na rede de ensino do estado. Se o aluno é cabeleireiro, e cursa Letras na faculdade, ele vai levar aos moradores da comunidade o conhecimento de seu dia-a-dia, da sua profissão. Dessa forma, o governo não está financiando a faculdade, mas sim o cidadão. Todo e qualquer mecanismo que facilite o ingresso e a permanência do aluno na universidade é um investimento na cidadania, no cidadão, que depois vai dar o retorno à sociedade e à nação através da profissão, da capacitação e da pesquisa. Na Europa, por exemplo, os governos já não financiam as universidades públicas. Está havendo uma repartição entre a instituição, o aluno e o governo. Porque a universalização do ensino superior gratuito é inviável para qualquer país capitalista, desde os mais ricos. Temos que manter uma boa rede pública de ensino superior, para que sirva como parâmetro para as outras e facilitar o acesso através do Fies, do ProUni e criar outros mecanismos que possibilitem absorver o maior número possível de jovens que queiram estudar, pois nossos índices são vergonhosos. Mas, ao mesmo tempo está sobrando vagas. A sociedade não está tendo condições de custear o ensino superior, e o poder público não tem recursos suficientes para abrir mais universidades gratuitas. As famílias estão com medo de assumirem dívidas a longo prazo. Preferem um ajuste, desconto ou uma bolsa de estudos mesmo que parcialmente. Esses fatos demonstram um pessimismo quanto ao futuro. Muitas instituições possuem crédito educativo próprio, alguns até em melhores condições que o Fies. Mas muitos alunos têm receio de pedir um financiamento.

 

Programas como o Fies e ProUni são importantes para reduzir a inadimplência e tornar viável o ensino superior privado?

 

O ProUni tem por objetivo atender com bolsa integral as famílias que recebem até um salário mínimo e meio. E com bolsa parcial quem recebe até três salários mínimos. Para o padrão brasileiro três salários mínimos constituem uma boa renda. A partir disso fizemos uma reflexão: se essas camadas são atendidas pelo programa do governo, sobraria para a escola particular quem recebe acima de três salários. É uma camada que teoricamente teria condições de pagar a mensalidade. Com isso esperávamos uma queda na inadimplência. Mas aconteceu justamente o contrário. A lei protege de forma exagerada, o que pode tornar inviável esse segmento. Por isso que a média de inadimplência na grande São Paulo é de 30%. No Rio de Janeiro, muitas instituições enfrentam dificuldades no cumprimento do pagamento de seus contratos. Em São Paulo, algumas instituições menos consolidadas sentem dificuldades, pois o número de alunos está estagnado ou decresce com a concorrência. A inadimplência, saindo dos parâmetros aceitáveis, causa um desequilíbrio no funcionamento de uma faculdade.

 

Muitas instituições de ensino superior enfrentam um contexto de crise. Em alguns casos, além das condições de mercado, também não há problemas na administração dessas instituições? Não falta maior nível de profissionalização na gestão de algumas escolas, faculdades e universidades?

 

O segmento padece de uma gestão mais profissionalizada. Normalmente são instituições familiares dirigidas sem muito profissionalismo. Na maioria dos casos, os dirigentes são educadores, que não tiveram a preocupação de modernizar sua administração: preocupando-se com custos, tendo racionalidade na gestão e não “inchando” as instituições com parentes, que muitas vezes são desqualificados para a área. Muitas instituições de ensino superior enfrentam situações embaraçosas por não terem uma administração transparente. Algumas, com 50 anos de existência, começam a ter problemas societários. Geralmente, começa com dois ou três sócios, que são irmãos. Com o passar das gerações o número de divisões vai aumentando e as instituições que não acordaram em tempo para fazer uma reestruturação de gestão passaram a realmente ter problemas. Existem várias que estão com problemas até hoje.

 

O senhor saberia dizer qual a situação das escolas privadas? Elas enfrentam as mesmas dificuldades das universidades ou apresentam situações diferentes, já que o aluno fica na instituição pelo menos um ano inteiro?

 

No Brasil, há dez anos, a escola de nível fundamental e médio vem decrescendo na quantidade de alunos, por dois motivos: houve uma ampliação significativa do setor por parte do poder público, a ponto de universalizar o ensino fundamental. Isso acarretou uma migração de alunos das escolas particulares para a pública. A outra causa foi a queda da fertilidade da mulher nos últimos 20 anos. Hoje a média é de dois filhos por casal. Houve o fechamento de muitas escolas, outras fundiram-se. Isso aconteceu em todo o país. Observa-se agora o surgimento excessivo de escolas fundamentais, principalmente nos bairros, devido às dificuldades no transporte, segurança e à dificuldade causada pela falta de tempo dos pais para levar e buscar os estudantes. Essa escola vai ter de 100 a 200 alunos – e será tipicamente regionalizada. Surgiu um maior número de escolas, mas com menor número de alunos. No geral, temos menos alunos na escola privada do que há dez anos.

 

O senhor saberia dizer qual deve ser a prática adotada para combater a inadimplência? Como as escolas devem se portar?

 

O principal entrave é tentar votar a medida provisória que dá direito ao aluno de freqüentar a instituição com todos os benefícios – mesmo sem o pagamento da mensalidade. Estamos tentando junto ao Congresso Nacional transformar essa realidade, de forma que o aluno seja considerado inadimplente a partir de três meses de mensalidades atrasadas. O projeto está parado na Comissão de Educação e Justiça. Porque falamos 90 dias? Hoje temos casos de alunos que, quando vencem a primeira e a segunda parcela sem pagamento, a instituição manda uma carta para ele informando do débito e solicitando o comparecimento na secretaria. Na maioria dos casos, o aluno não dá muita importância e ignora essa carta, somente procurando rever seus débitos ao final do ano. Sabendo que poderá ter seu contrato reincidido, o aluno que pode pagar, mas que por descuido não quitou as mensalidades, efetuará o pagamento diante do risco de rescisão do contrato. Porém, o aluno que realmente está em dificuldades financeiras procura a faculdade e faz um acerto – postergando o pagamento ou parcelando a dívida. Nenhuma instituição de ensino tem interesse em perder o aluno. Estou há 42 anos no ramo e não tenho lembranças de ter reincidido nenhum contrato, mesmo antes da Lei Federal Nº 9870/99 existir. A instituição de ensino não é um paredão insensível para as diferentes realidades. São educadores que fundaram escolas e estão inseridos na comunidade.

 

A instituição que dá descontos para o aluno inadimplente, no momento em que ele negocia a dívida, está “premiando” este aluno?

 

Nas instituições de ensino superior o maior índice de inadimplência é no último ano, pois os estudantes pegam o diploma e não possuem mais compromisso com a faculdade. Quando são cobrados, os alunos tentam negociar a dívida. Em muitos casos perguntam qual o desconto que recebem por pagar a dívida integralmente, mostrando que ele tinha condições de pagar anteriormente. Acho acintoso, mas acontece anualmente nas escolas. Esses fatos servem para corroborar o entendimento de que a legislação precisa mudar. As faculdades têm se desdobrado para não perder o pagamento das mensalidades – e menos ainda o aluno . É uma injustiça para o aluno que é pontual, pois se o devedor ao final do ano recebe um desconto, ele está sendo premiado. Serve até de incentivo para que o aluno não seja pontual no pagamento.

 

Pesquisas indicam que a educação ocupa uma das últimas posições na ranking de prioridades de gastos da população brasileira. A que o senhor atribui este comportamento? Como modificá-lo?

 

Fala-se muito em educação, mas muitas pessoas entendem que é um gasto supérfluo. Na Europa e nos EUA, a criança nasce e as famílias abrem uma caderneta de poupança que é destinada para custear a educação. Aqui no Brasil não temos esse hábito. E muito menos uma poupança específica para investimentos pessoais em educação. Não há o planejamento familiar de futuro. Somente agora alguns bancos estão criando como produto uma caderneta de poupança com esse fim. No sindicato estamos elaborando um projeto de criar um cartão fidelidade, juntamente com outras instituições financeiras e redes de comércio varejista de um modo geral, visando destinar um percentual desse cartão a um fundo para financiar os estudos de jovens que não tenham condições financeiras de ingressar em instituições de ensino superior privado. Estamos trabalhando há três anos nesse projeto. Existem muitos modelos similares no mundo. Esse é um assunto de extrema importância e que deve ser discutido pela sociedade.