Última versão da Reforma do Ensino Superior desagrada especialistas

Descontentamento geral. Essa é a sensação dos reitores das instituições públicas e privadas, bem como de especialistas no Ensino Superior do país, quanto à versão final da Reforma da Educação Superior enviada, na última quinta-feira, para o Congresso Nacional. O texto, que sofreu poucas mudanças em relação ao anteprojeto, – cuja grande novidade é a questão das universidades públicas terem garantia de financiamento de 75% da receita vinculada ao Ensino Superior -, segundo especialistas, pouco contribui para o avanço e a modernização do setor no país. Em alguns casos, há quem defenda que as resoluções se configuram, inclusive, em retrocesso.

No caso das instituições federais, o que mais gerou insatisfação foram os itens financiamento e autonomia. Em relação ao primeiro quesito, uma questão crucial para o orçamento das IES ficou fora do texto: o financiamento dos HU”s (Hospitais Universitários). Nas três versões apresentadas à sociedade pelo MEC (Ministério da Educação), entre agosto de 2004 e julho de 2005, o custeio dos hospitais ficava de fora das contas das instituições. Na versão final, porém, os custos com os HU”s ficam sob responsabilidade das reitorias, o que pode significar uma perda de R$ 2 bilhões por ano no orçamento das instituições.

Em relação à autonomia, as reclamações se dividem entre o processo de escolha dos reitores das Federais e a questão das procuradorias, temas que já vinham sendo discutidos amplamente pelo Governo e pelos representantes das Instituições Federais, mas que na resolução final não agradaram a eles. Isto porque, a escolha direta dos reitores das Federais já constava nas primeiras versões da Reforma, mas, no texto final, deu lugar à lista tríplice, cabendo ao Governo Federal a decisão. Para o Presidente da Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior), Paulo Speller, a medida fere a autonomia das instituições.

Contra-ataque das Federais

Uma vez que, para as Federais, as mudanças não foram vistas com bons olhos, os reitores rapidamente organizaram um encontro com o presidente Luis Inácio Lula da Silva e o atual Ministro da Educação, Fernando Haddad, para incluir novas condições na versão final da Reforma, antes que a mesma seja analisada e aprovada pelo Congresso Nacional. “Já fizemos algumas emendas propondo ao presidente Lula alterações substanciais no que diz respeito ao financiamento e à autonomia, entre outras questões individuais”, explica Speller.

Entre as mudanças, estão o financiamento dos HU”s pelo governo, partindo da premissa de que seus fins não são apenas para a educação, já que as unidades oferecem assistência de saúde à população. Ainda com relação ao tema autonomia, os reitores pedem mais agilidade para as instituições, especialmente sobre o tema gestão financeira. Hoje, segundo Speller, muito centralizada em Brasília. Também foi encaminhada uma proposta de emenda tratando das procuradorias para que, da mesma forma que o BC (Banco Central) foi excepcionalizado, as Ifes (Instituições Federais de Ensino Superior) também o sejam, sob a alegação que, de acordo com o artigo 207 da Constituição Federal da Constituição, as instituições federais são autônomas.

“Tive uma conversa de uma hora com o presidente e depois com o Ministro, em que ponderamos estas questões e eles se mostraram muito sensíveis e conscientes das nossas reivindicações”, revela Speller. É por conta disso que o presidente da Andifes afirma que sua expectativa é de que se tenha um resultado positivo e um projeto melhorado da Reforma do Ensino Superior brasileiro. “Depois da reunião, o presidente Lula assumiu uma postura pública de que esta proposta final não é fechada do Governo, mas uma base inicial a ser melhorada”, reforça.

O secretário executivo-adjunto do Ministério da Educação, André Lázaro, porém, explica que o posicionamento do governo sobre as resoluções, como a lista tríplice e a questão das procuradorias foram decisões da AGU (Advocacia Geral da União) e pouco poderá ser mudado, uma vez que foi estudada a condição de constitucionalidade dos dois temas antes da tomada da decisão. “As duas situações não podem ser mudadas, ao menos por nós do governo, pois elas decorrem de um entendimento feito pela AGU quanto à constitucionalidade das ações”, diz.

Além disso, no caso da lista tríplice, Lázaro acredita que está sendo feito um “cavalo de batalha” equivocado quanto à redação do texto. “Os reitores serão escolhidos diretamente pela comunidade que vai votar uma lista tríplice. Ou seja, cada chapa terá três nomes – os mais votados – e serão estes mesmos nomes que chegarão às mãos do presidente da república, que se comprometeu a escolher sempre o primeiro da lista”, esclarece. Lázaro diz ainda que não há dúvidas, para o Ministério, quanto à finalidade do procedimento. “A questão é que a AGU afirmou que o presidente não pode ver frustado o seu direito assegurado por lei de escolher. E, uma vez que só se tem um nome, como o caso da indicação uninominal, o presidente não tem escolha”, explica.

Sobre a questão das procuradorias, mais uma vez a decisão coube a AGU. “Quando o Ministério da Fazenda e da Educação brigam sobre algum aspecto de pertinência constitucional a AGU arbitra. Se a gente briga com a AGU quem arbitra? Neste caso, foi isso. Defendíamos uma lista uninominal e o desejo das federais de terem suas próprias procuradorias, mas a AGU disse que ambas as medidas eram inconstitucionais”, revela. Apesar da derrota neste quesito, Lázaro aponta outra questão que está sendo deixada de lado, mas que ele considera pertinente. “Uma vez que os procuradores são da AGU, conseguimos que na reforma se excluísse a hipótese de que os precatórios sejam da universidade. Ou seja, se a universidade perder um pleito de natureza trabalhista, a dívida não é da instituição, mas sim, da União. Desta forma, tirou-se o bônus, mas também, o ônus.”

A insatisfação das IES privadas

Foi, também, com dissabor que a versão final da Reforma foi recebida pelos dirigentes das mantenedoras das instituições de Ensino Superior privadas do país. A principal reclamação é a tentativa do governo de controlar ainda mais a gestão das IES (instituições de Ensino Superior) particulares. Para o Presidente do Semesp (Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior no Estado de São Paulo), Hermes Ferreira Figueiredo, é infeliz a constatação de que a iniciativa privada não foi atendida na sua principal reivindicação, a conveniência de se dividir o projeto da Reforma do Ensino Superior em documentos distintos. Um que tratasse da regulação e financiamento das universidades públicas e da sua gestão, já que são órgãos governamentais, e este seu relacionamento com o MEC deveria ser tratado em um documento à parte. E um segundo documento que deveria tratar então do relacionamento entre o MEC e a iniciativa privada, já que a preocupação era a regulação do sistema privado.

Figueiredo reclama que, no fim das contas, colocou-se tudo num único documento, mudando as condições de financiamento para as Ifes e seus modelos de gestão mas, no que diz respeito às IES privadas, não houve nenhuma Reforma. “Houve apenas um reforço de pré-requisitos quanto à gestão destas instituições, que é um assunto que não tem nada a ver com qualidade de ensino ou com a avaliação”, reclama.

Para ele, a preocupação em regular o sistema privado está demonstrada em vários pontos, em especial, quanto à composição do conselho universitário, no momento em que o texto diz que as IES privadas têm autonomia para fazer o conselho, desde que delimitando a participação da entidade mantenedora no colegiado e introduzindo um conselho na universidade composto pela sociedade civil. “Diz-se que este conselho seria apenas para acompanhamento, mas ele tem poder de interferir e não podemos ter interferências estranhas, uma vez que não serão eles que vão pagar a conta, mas sim a mantenedora”, critica o presidente do Semesp. Ainda sobre estão questão, Figueiredo cutuca: “Se conselhos externos funcionassem, o Conselho Social que o atual Governo criou teria sido um sucesso.”

De acordo com o consultor especializado em marketing Educacional e presidente da Hoper Consultoria, Ryon Braga, as críticas do presidente do Semesp têm fundamento, à medida que a essência deste anteprojeto não foi a regulamentação do sistema público, mas sim, a vontade de controlar e restringir a manifestação do setor privado. “Tomamos como exemplo, os itens que se referem a limitação do capital estrangeiro em 30% e da composição de conselhos comunitários pra compor a tomada de decisão junto às mantenedoras das IES particulares”, pontua.

Para Braga, as mudanças presentes na última versão do texto da Reforma não atendem as necessidades de ambos os setores, mas, principalmente, não melhoram em nada para o setor privado, apenas burocratizam e dificultam mais a sua existência. “Tudo que poderia ser feito para regulamentar a função do privado já foi feito no decreto ponte, então os artigos presentes neste anteprojeto vem mais no sentido de burocratizar, do que efetivamente regulamentar algo que já está estabelecido pelo decreto ponte”, acrescenta.

O consultor critica a última versão do projeto e afirma que o mesmo significa um retrocesso para o Ensino Superior brasileiro. “Estamos voltando a um processo cartorialista de controle da Educação. As cláusulas no anteprojeto referente ao ensino público poderiam ter sido feitas sem um anteprojeto, já que cabe ao governo legislar isso. Incluir este material no texto da reforma só serviu para engrossá-lo”, opina. Mais críticas são feitas, desta vez pelo presidente do Semesp, quanto à vinculação de verbas para as Ifes. Segundo ele, esta medida irá causar uma demanda muito grande nos anos futuros e não existe país no mundo que possa universalizar o ensino público gratuito superior. Desta forma, seria necessário aproveitar a oportunidade de repensar o sistema ou outras alternativas de seu financiamento. “As universidades públicas não deveriam ser em quantidade, mas sim, de qualidade para servir de referência aos demais estabelecimentos de ensino”, diz.

Outro ponto que desagradou as instituições privadas foi a questão da limitação do capital estrangeiro em 30% sob a alegação de que o Brasil corre o risco de perder sua identidade cultural. “Hoje, ninguém pode segurar a globalização. Na comunidade européia há uma globalização total (econômica, política, e educacional) e nem por isso as nações que compõem essa comunidade perderam sua identidade cultural”, compara.

Este tipo de limitação, segundo Figueiredo, é uma estatégia equivocada, já que no contexto atual, é praticamente impossível não ter este intercâmbio cultural, político e social do mundo. “É querer tapar o sol com a peneira. O mundo não tem mais fronteiras”, afirma. Para ele, mais um motivo para confirmar que este tipo de atitude não tem razão de ser é o fato de que a educação, mesmo nas IES privadas, é regulada pelo Código Civil. Logo, o estabelecimento não pode ser vendido aleatoreamente. “Para limitar em 30% seria melhor dizer que não é permitido. No mundo capitalista em que vivemos, nenhuma organização estrangeira teria interesse de participar com 30% de uma instituição onde ele não fosse majoritária para decidir o que fazer”, ressalta.

Mudanças do Semesp

Assim com a Andifes, o Semesp também pretende apresentar emendas para que suas propostas sejam acolhidas. “Não vai ser uma tramitação fácil nem rápida. Tomo como exemplo o Fundeb, que já está sendo alardeado como uma realidade, mas não foi aprovado ainda. É um assunto bastante complexo que mexe com todo o sistema educacional brasileiro e não podemos ficar fazendo uma reforma universitária a cada cinco ou dez anos. De qualquer forma, vamos ter sim bastante resistência, mas vamos procurar barrar aquilo que achamos que nos prejudica e introduzir outros assuntos que não foram tratados”, diz Figueiredo.

Apesar de todas as reclamações das instituições privadas, o secretário executivo-adjunto do Ministério da Educação, André Lázaro foi taxativo: “Nos governos anteriores, o setor cresceu de modo desordenado, sem parâmetros claros de adequação, vocação ou vínculos com as reais necessidades. Uma vez que não se tinha regulamentação, estas instituições dependiam de ter uma sala de aula, um professor e uma biblioteca, sequer atualizada, para funcionar. Daí a necessidade de se oferecer regras claras. Isso está sendo feito por meio de um marco regulatório para que o setor funcione dentro de uma perspectiva de qualidade.”

Com relação ao capital estrangeiro, Lázaro discorda da posição do presidente do Semesp. Segundo ele, a percepção do Ministério da Educação é de que o empresariado nacional que atua seriamente no campo da educação está preocupado com as compras feitas pelo capital estrangeiro. Como o Brasil não admite que o ensino seja um comércio, tanto é que recusou essa posição na OMC (Organização Mundial do Comércio), não há porque deixar que seja dominado pelo capital estrangeiro. “Nós já temos áreas importantes como o setor editorial, por exemplo, em que o capital estrangeiro tem entrado de modo pesado e isso é motivo de preocupação. É importante que a educação seja percebida como instrumento de desenvolvimetno nacional”, diz.

O lado bom da Reforma

Em meio a todas as críticas feitas tanto por parte do setor público como do privado, o secretário executivo-adjunto do Ministério da Educação, André Lázaro, avalia o processo da Reforma de forma positiva e pondera que, por mais que o texto final não agrade a todos, os méritos são muitos, principalmente por colocar em pauta na agenda do país o tema Educação Superior. “Creio que o processo foi bom e democrático. Ouvimos muita gente ao longo destes anos e conseguimos chamar a atenção do país para o Ensino Superior. O resultado, por sua vez, é fruto de um trabalho complexo e de interesses conflitantes que não agradaria ninguém integralmente e, para ser sincero, nem mesmo ao próprio MEC”, diz.

Parafraseando o presidente Lula, Lázaro defende que a proposta final da reforma do Ensino Superior é um embrião entregue ao poder legislativo que ainda passará por mudanças e terá de amadurecer, no entanto, há diversos pontos que merecem destaque. Em primeiro lugar, a tipificação das instituições. “Nesta versão da Reforma, está muito bem destacado o que é universidade, centro universitário e faculdade. E não é só isso, foram definidos os tipos de estrutura e composição de docentes de cada uma delas. “Isso é um extraordinário estímulo para garantir a qualidade da educaçao brasileira”, diz.

O secretário ressalta a medida que garante às universidades públicas terem financiamento de 75% da receita vinculada ao Ensino Superior. “Estamos garantindo estabilidade e financiamento para estas instituições. Ainda que seja um recurso finito, ganhamos fôlego para que nos próximos cinco anos haja um crescimento sem susto”, afirma. Outra questão de extrema importância neste texto da reforma é a garantia de apoio estudantil, algo que, para ele, finalmente o governo brasileiro passa a enxergar. “Durante muito tempo, por sua excelência, as Ifes atraíam os alunos da elite. Neste caso, fornecer alimentação e alojamento não eram importantes. Uma vez que passamos a nos inclinar favoravelmente ao acolhimento de estudante de origem popular, temos que dar condições a ele. Acho que a reforma tem pelo menos estes grandes avanços.”

A aprovação da Reforma do Ensino Superior está gerando muita expectativa entre os especialistas. Para o consultor Ryon Braga, porém, dificilmente ela será aprovada neste ano de eleições. “Acho muito difícil. Creio que ela deve passar por algumas mudanças antes de ser aprovada pelo Congresso.” A expectativa do secretário, no entanto, é de que ela seja votada ainda em 2006. “Acredito que ela sairá ainda este ano. Não cabe, porém, ao executivo impor a urgência na aprovação do texto, mas a todos os atores que participaram de sua construção, ou seja, a UNE, a Andifes, e outras entidades, buscar junto ao parlamento a urgência que o tema merece”, conclui.