PNE | Edição 199

Metas do PNE voltadas ao ensino superior são de difícil execução, em especial após as medidas restritivas ao financiamento estudantil

por Paulo de Camargo

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Nos próximos 10 anos, o ensino superior brasileiro deverá receber pelo menos mais 1,7 milhão de alunos com idade entre 18 e 24 anos. Esses números não são projeções de consultorias ou previsões de especialistas. Na verdade, representam o desejo da sociedade brasileira, manifestada na aprovação da Lei 13.005, de 25 de junho de 2014 – o Plano Nacional de Educação (PNE). A lei, que materializa os objetivos para o ensino brasileiro, da educação infantil à pós-graduação, estabelece a expansão das matrículas totais de 32,3% para 50% da população dessa faixa etária.

Alguns apostam que será mais uma letra morta, ou seja, leis bem-intencionadas que jamais deixam o papel. Mas a verdade é que nunca um PNE chegou com mais credibilidade do que o atual. “A começar do fato de que é o primeiro que vem com os meios financeiros determinados em uma das metas”, explica o filósofo César Nunes, especialista em história da educação. Nunes faz referência à meta 20, que determina a expansão dos recursos destinados à educação para 7% do PIB, em 5 anos, e a 10%, em uma década.

Ao mesmo tempo, o plano tem a particularidade de ter sido uma ampla construção social, amparada na Conferência Nacional de Educação (realizada em 2010, e da qual derivou o projeto que virou lei em 2014). O processo que levou à Conae de 2010, com conferências prévias em municípios e estados, mobilizou mais de 3,5 milhões de pessoas, com entidades representativas de praticamente todos os setores, incluindo a educação privada, ainda que esta tenha sido sub-representada. “É um instrumento de mudança. Estamos melhor com PNE do que sem PNE, sem dúvida nenhuma”, afirma o pesquisador Jamil Cury, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).

Por isso, a partir da publicação do PNE, todo gestor tem a lição de casa de conhecer o texto legal, que será a base para a elaboração das políticas públicas em todas as etapas e modalidades de ensino, inclusive a educação superior. Nesse caso, são três as metas que afetam diretamente o segmento (confira  box ao lado). A meta 12 define a porcentagem da população de 18 a 24 anos que deve ser atendida; a meta 13 trata da elevação do número de mestres e doutores no corpo docente das instituições de ensino superior, e a 14 estabelece a meta de titulação anual em 60 mil mestres e 25 mil doutores até 2024.

Para Mozart Neves Ramos, ex-membro do Conselho Nacional de Educação e atual diretor de articulação e inovação do Instituto Ayrton Senna, a meta 12, especialmente, implica duplicar a estrutura do ensino superior brasileiro, ampliando inclusive as vagas ofertadas pela rede pública. “É uma tarefa complexa, que vai exigir não apenas mais financiamento, mas também a elevação da qualidade de toda a educação básica”, analisa.

A julgar por esse critério, o PNE do ensino superior começou patinando. Em 2014, além de mudar as regras dos principais programas de estímulo ao acesso à universidade, o ProUni e o Fies, o governo promoveu o corte de mais de R$ 9 bilhões do Ministério da Educação no bojo do pacote fiscal, em maio.

A qualidade da educação básica já começa, também, a definir os limites ousados das metas do PNE. A mais recente decisão do governo ratifica medida do final de 2014, que limita o acesso ao financiamento estudantil aos alunos que tenham uma nota mínima no Enem, a partir de 2016. O texto da portaria assinada pelo ministro Renato Janine Ribeiro altera norma de 2010 e mantém as exigências formuladas no final do ano passado, ou seja, média aritmética igual ou superior a 450 pontos no Enem e nota de redação maior do que zero.

Segundo esses critérios, estão eliminados do Fies, de cara, 529 mil alunos que zeraram em redação. Mas o problema é ainda maior. Segundo estudo do Semesp, feito no início de 2015 (“Fies – O impacto das novas medidas”), 64,6% da base de alunos que se utilizam do Enem poderiam potencialmente solicitar, até 2014, o financiamento para cursar o ensino superior. Após a medida, esse “estoque de alunos” fica restrito a 16% desta mesma base.

A restrição afeta diretamente os alunos de menor renda. Entre aqueles que têm renda entre 1,5 e 2 salários mínimos, por exemplo, apenas 46% tiveram nota acima de 450 pontos e não zeraram na redação. Grande parte dos alunos que estudam em escolas públicas e vão para o ensino superior, por sinal, vão para o ensino privado, percentual que subiu de 2012 para 2013, de 58,7% para 69,7%.

Redução da desigualdade

A preocupação com os programas de financiamento se justifica também pelo forte impacto de desigualdade social nas matrículas do ensino superior.

Segundo dados do IBGE, elaborados pelo movimento Todos pela Educação, enquanto a taxa líquida de matrículas (ou seja, a taxa que considera a população que se encontra na etapa correspondente para a idade) era de 16,5%, entre as pessoas de 18 a 24 anos, a porcentagem cai para 5,1% se considerados os 25% mais pobres.

Da mesma forma, a taxa líquida de matrículas entre brancos é de 23,6%, enquanto é de 10,2% para os pretos. Pelo mesmo critério, o ensino superior é três vezes mais acessível (na idade esperada) para os habitantes de 18 a 24 anos da cidade do que no campo.

Para o segmento mais privilegiado, ou seja, para os 25% mais ricos, a meta de 10 anos do PNE foi atingida ainda em 2001, e hoje beira a casa dos 40%.

Por isso, boa parte das estratégias que correspondem à meta 12 se destinam à redução das desigualdades sociais, o que pode também trazer informações importantes para o planejamento estratégico das instituições de ensino superior, por exemplo, ampliando a oferta de cursos noturnos e a educação a distância.

Embora, como seria natural, sejam as metas do PNE que ganhem mais notoriedade, é muito importante que os gestores da educação superior prestem atenção às estratégias definidas, pois elas embutem a previsão de mudanças importantes. No caso da meta 12, por exemplo, a estratégia 5 fala em expansão do Fies com foco na redução das desigualdades étnico-raciais.

A lei prevê que o financiamento estudantil deverá ser expandido com a constituição de um fundo garantidor, dispensando a exigência de fiador. Outra mudança importante é a ampliação dos créditos curriculares em programas de extensão universitária de pertinência social para 10% do total.

No PNE, na estratégia 19, está prevista para acontecer em até dois anos a “reestruturação dos procedimentos de avaliação, regulação e supervisão, em relação aos processos de autorização de cursos e instituições, de reconhecimento ou renovação de reconhecimento de cursos superiores e de credenciamento ou recredenciamento de instituições, no âmbito do sistema federal de ensino”. O que pode literalmente significar uma caixa-preta a ser aberta – ou criada – em dois anos.

Recursos

Assim como ocorre na educação básica, o grande teste do Plano Nacional de Educação para o ensino superior é a ampliação dos recursos destinados ao ensino. As expectativas são tão grandes quanto as polêmicas. É bem verdade que o Brasil efetivamente vem aumentando os gastos em educação em proporção ao PIB, passando de 3,9% em 2000 para 5,6%, em 2013. Mas é preciso notar que boa parte dessa expansão do gasto foi dirigido à educação básica. O ensino médio, por exemplo, viu dobrar os recursos investidos nesse período, passando de 0,5% para 1% do PIB. Já o investimento no ensino superior subiu bem menos: de 0,7% para 0,9%.

Na prática, isso significa que o país gasta hoje R$ 21,3 mil reais por ano por estudante, contra R$ 20 mil reais gastos em 2000. Dessa maneira, é provável que o setor privado continue representando boa parte do esforço brasileiro para graduar seus estudantes. “Mas é preciso assegurar que isso aconteça dentro de parâmetros de qualidade”, diz Jamil Cury, da PUC-MG.

A elevação esperada do total dos investimentos ainda é uma incógnita. Afinal, de onde virão os recursos? Para a economista Ursula Peres, mestre em gestão de políticas públicas, essa pergunta ainda está sem resposta. Segundo um estudo que realizou, a elevação dos gastos verificada ao longo da última década se deveu principalmente ao aumento da carga tributária.

Essa expansão chegou ao limite. Agora, novas fontes de recurso precisam ser definidas. Contudo, o petróleo do pré-sal, sempre apontado como a mina de ouro negro da educação, terá um impacto que vem sendo estimado em menos de 1% do PIB – sem contar que sofre a influência de fatores como os preços do mercado internacional (hoje em baixa), das dificuldades de exploração e agora da própria situação crítica da Petrobras. Com isso, o sinal de alerta do financiamento já está ligado.

Poucos duvidam, no entanto, que a elevação progressiva dos investimentos públicos em educação vai prosseguir, ainda que não atinja os patamares buscados. É hora, portanto, de renovar o planejamento estratégico para a próxima década, levando em conta os impactos que a realização total ou parcial do PNE terá sobre a educação, em todas as suas etapas.