O intercâmbio por meio do programa Ciência sem Fronteiras esbarra no conhecimento limitado de línguas estrangeiras e impulsiona o envolvimento de instituições para capacitar seus estudantes e professores

por Maria Celeste de Oliveira

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A internacionalização da educação superior está na ordem do dia do governo brasileiro. A estabilidade da economia e a criação do programa Ciência sem Fronteiras (CsF) colocaram o Brasil numa vitrine, chamando a atenção de inúmeras universidades estrangeiras interessadas em atrair alunos brasileiros. Apesar do cenário favorável, os intercâmbios entre estudantes e professores brasileiros e de outros países ainda esbarram em um empecilho: o precário domínio de línguas estrangeiras, principalmente o inglês, por parte dos brasileiros.

Em 2012, estima-se que cerca de 20% das vagas ofertadas pelo Ciência sem Fronteiras não tenham sido preenchidas devido, dentre outros motivos, à falta de candidatos suficientes com proficiência em inglês. Ao mesmo tempo, a falta de conhecimento em inglês acarreta escassez da oferta de cursos de graduação e de pós-graduação nessa língua nas instituições brasileiras, afastando estudantes e pesquisadores estrangeiros.

“É um processo sem volta. A universidade que não se internacionalizar entrará no ostracismo”, prevê Carlos Vergani, da Assessoria de Relações Exteriores da Universidade Estadual Paulista (Unesp), que vai começar a oferecer 50 disciplinas de pós-graduação em inglês, iniciativa que faz parte do plano de internacionalização da instituição. “O inglês é uma língua internacional, que possibilita atrair estudantes do mundo todo, inclusive de regiões como a Ásia e o Oriente Médio”, diz.

As dimensões continentais do Brasil (o que alimenta uma percepção de autossufi­ciência e um certo isolamento) e, até, a legislação – que determina que o ensino regular seja em língua portuguesa – colaboram para que o aprendizado de uma língua estrangeira não seja uma prioridade para muitos. Assim, ao mesmo tempo que as possibilidades de intercâmbio e de pesquisas ou atividades acadêmicas em conjunto com parceiros de outras partes do mundo parecem assumir possibilidades infinitas, elas podem ser frustradas por causa da barreira da língua.

“Temos cerca de 70 alunos de graduação interessados em estudar no exterior, mas acredito que no máximo 12 vão atravessar a barreira da língua”, conta Rocindes Correa, assessor da Reitoria do Centro Universitário de Anápolis. Para participar do CsF, o candidato precisa cumprir uma série de pré-requisitos previstos em edital, dentre eles a certificação de proficiência em inglês em exames como o Test of English as a Foreign Language, o Tofl.

Para Argiñe Wieland, diretora do escritório internacional da rede Laureate International Universities, a língua é, efetivamente, uma limitação para os intercâmbios envolvendo os brasileiros – norteando, inclusive, seus destinos. “A maior parte dos alunos vai para a Espanha e países de língua espanhola, como Chile, Peru e México, porque a língua é a mais próxima do português, o que facilita a adaptação”, diz. No caso da Laureate, o processo acaba sendo facilitado pelo fato de que os alunos transitam entre instituições integrantes da rede. Desse modo, Estados Unidos e Canadá são outros destinos cobiçados.

Por isso, a criação de condições, nas próprias instituições de ensino superior, para que alunos e professores aprendam inglês e espanhol, é fundamental a fim de que a mobilidade se intensifique. É essa a linha adotada por instituições interessadas em entrar no circuito da internacionalização. Na Universidade Presbiteriana Mackenzie, por exemplo, os docentes podem estudar línguas gratuitamente. No Centro Universitário de Anápolis, foram feitos investimentos na compra de equipamentos e na contratação de profissionais para oferecer cursos de línguas aos estudantes.

Estratégia e planejamento
Mas a decisão de partir para a internacionalização envolve mais do que oferecer cursos de línguas a alunos e professores e do que habilitar a instituição para participar dos editais do CsF. Além disso, as possibilidades de ampliar horizontes não se limitam ao programa do governo. Várias instituições que estão tomando esse rumo adotam uma estratégia, inclusive por meio da implantação de setores que se dedicam exclusivamente ao tema.

No Mackenzie, a internacionalização começou a se fortalecer há cinco anos e desde então vem crescendo consideravelmente. Em 2013, cerca de 400 alunos da instituição estão realizando estudos no exterior. “Há cinco anos, eram 40”, contrapõe Claudia Forte, coordenadora Interinstitucional e Internacional do Mackenzie. De acordo com ela, a existência de um setor voltado para a internacionalização favorece o processo na medida em que possibilita o planejamento das ações e os contatos com universidades de outros países.

Na Unesp, a internacionalização começou a ser estruturada quatro anos atrás e a efetiva implementação teve início há dois. “A oferta de disciplinas em inglês é uma das metas de um plano de internacionalização. Resulta de um processo de discussão interno”, afirma Carlos Vergani.

Já mais recentemente, em 2012, o Centro Universitário de Anápolis criou seu Departamento de Relações Exteriores, responsável por buscar oportunidades de parceria e intercâmbios.

“A instituição tomou a decisão de se internacionalizar porque acreditamos que esse é um diferencial que o aluno vai incorporar à sua formação e que terá peso na sua inserção no mercado de trabalho”, analisa Rocindes Correa. Esse diferencial na formação acaba revertendo positivamente para a instituição que oferece essa possibilidade a seus alunos. A iniciativa já resultou em convênios com instituições nos Estados Unidos, China, Angola e Guiné-Bissau – parcerias realizadas independentemente do programa Ciência sem Fronteiras.

“O Ciência sem Fronteiras é uma iniciativa importante, mas já existiam outros caminhos por meio dos convênios”, argumenta Claudia Forte, do Mackenzie, que mantém 66 convênios com instituições estrangeiras. Tão importante quanto os convênios são os relacionamentos interpessoais de professores, pesquisadores e gestores no exterior, pois, muitas vezes, acabam culminando em parcerias institucionais. Desse modo, Espanha, Portugal e Itália se tornaram destinos importantes dos alunos do Mackenzie. “Nosso curso de arquitetura mantém contatos com muitas universidades italianas”, explica Claudia.

Disciplinas em inglês
Prática comum em outros países, só agora o Brasil começa a despertar para oferecer disciplinas de graduação e pós-graduação em língua inglesa. De acordo com Carlos Vergani, essa é uma importante via para dar mais visibilidade à produção científica brasileira e de fortalecimento das parcerias, inserindo a instituição mais fortemente no circuito internacional. No caso da Unesp, serão oferecidas disciplinas em quatro áreas de excelência na instituição: odontologia, ciências agrárias, energias alternativas e linguística e literatura. “São áreas que despertam grande interesse por parte dos estrangeiros”, explica Vergani. “Temos muita pesquisa, muitos laboratórios de excelência no Brasil que precisam ter mais visibilidade.”

No entanto, o percurso entre a decisão de incluir disciplinas em língua estrangeira na grade curricular até a oferta efetiva é complexo. Envolve uma adequação à legislação brasileira, às normas da universidade e aos padrões internacionais em termos de conteúdo e contagem de créditos. No caso da Unesp, a grade foi estruturada segundo o sistema europeu, conhecido como ECTS (European Credit Transfer and Accumulation System), que unifica o sistema de créditos das disciplinas garantindo a equivalên­cia acadêmica em outros países. O sistema não vale para os Estados Unidos, por exemplo, mas é aceito em boa parte de outras instituições do mundo.

Segundo o assessor da Unesp, esta adequação implica uma mudança de mentalidade, pois a ementa do curso tem de ser mais detalhada e planejada. Por exemplo, em todas as atividades, o peso de cada uma e as competências esperadas na avaliação final têm de ser descritas. “Quando se matricula, o aluno já recebe todo o planejamento, sabendo o peso de cada atividade na avaliação”, explica Vergani. A questão é que, de maneira geral, os docentes das universidades brasileiras não estão acostumados a trabalhar sob um planejamento tão rigoroso.

Identificar professores dispostos a ministrar um curso inteiro em inglês é outra dificuldade enfrentada pelas instituições que decidem oferecer disciplinas em outras línguas. “Muitos professores dominam o inglês, dão palestras, escrevem artigos no idioma, mas não se sentem à vontade para dar um curso completo”, diz Luciana Morilas, presidente da Comissão de Relações Internacionais da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto (FEA-RP/USP).

A FEA-RP/USP está oferecendo este ano quatro disciplinas de graduação em inglês. Para se ajustar à legislação brasileira, que exige que as aulas no âmbito do ensino oficial sejam ministradas em português, o currículo foi montado com disciplinas espelhadas, ou seja, a mesma disciplina é ofertada, não necessariamente no mesmo período, em inglês e em português.

Segundo Luciana, as disciplinas foram concebidas para atender às necessidades de estrangeiros, que se mostram cada vez mais interessados no Brasil, por causa da projeção do país no cenário internacional. “Os estudantes querem conhecer a legislação brasileira e as características do país, muitos pensando em realizar negócios aqui”, explica a professora da FEA-RP/USP. As disciplinas em inglês são, também, uma maneira de os estudantes brasileiros se prepararem para experiência de estudos no exterior.

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Restrição de área
Embora não deva ser considerado como a principal maneira de buscar a internacionalização do ensino superior, especialistas acreditam que o programa Ciência sem Fronteiras (CsF) vai impulsionar a movimentação de estudantes e abrir caminho para maior intercâmbio institucional. “O Ciência sem Fronteiras é um grande estímulo. Antes do programa, quem queria estudar no exterior tinha de encontrar meios para se sustentar”, analisa Antônio Manzato, assessor de Assuntos Internacionais e Institucionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). No entanto, na visão de Manzato, o fato de o programa priorizar as ciências puras e tecnológicas restringe as chances dos candidatos da área de humanas.  “O Brasil tende a pensar mais em tecnologia do que em educação, mas um programa desse tipo pode ser muito importante para qualificar a formação dos nossos docentes da educação básica”, pontua Manzato.