Para um dos pioneiros da internet no Brasil, é preciso quebrar o modelo de organização e controle das instituições acadêmicas para avançarmos na construção de novos processos educacionais de base tecnológica

Por Udo Simons
entrevista com Silvio Meira

"As corporações educacionais precisam entender que o ambiente é estruturalmente outro, transformado pela hiperconectividade."

“As corporações educacionais precisam entender que o ambiente é estruturalmente outro, transformado pela hiperconectividade.”

Integrante do primeiro comitê gestor da internet no Brasil, o doutor em ciência da computação Silvio Meira não mede esforços para atingir quaisquer objetivos determinados. Nascido paraibano em Taperoá – cidade berço também de Ariano Suassuna – o engenheiro eletrônico não viu limitação na infância da década de 1950, quando nem TV tinha. Nem sequer o contexto social e político de sua adolescência, vivida em meados de 1960, foi impedimento para dar os primeiros passos no mundo da tecnologia, o que para uma criança e adolescente daquela época mais podia soar como história de ficção científica.

Formado em engenharia eletrônica em 1977 pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), já em 1981 tornou-se mestre em ciências da computação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e logo mais, em 1985, doutor pela University of Kent at Canterbury. A sua titulação, porém, não é o que mais impacta quando Silvio Meira se manifesta. “Sou um provocador. Falo para desafiar as pessoas a saírem de suas normas”, diz.

De provocação em provocação tornou-se uma das referências nacionais quando o assunto é tecnologia, seus usos e aplicações educacionais e sociais. Para além dos problemas de conexão com a internet Brasil afora, Meira considera primordial se projetar no futuro, mas sem desgrudar do presente. “Quem consegue superar os desafios do fazer agora entregará resultados, dentro do que é possível fazer agora, com qualidade”, acredita.

Mais recentemente, desde 2014, Meira se tornou professor associado do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV e ainda colabora com o ikewai.com, uma rede de business designers, baseada no Porto Digital de Recife. Como recomendação aos gestores educacionais, Meira sugere o “pensar incremental” para depois avançar no investimento tecnológico. Entre outras ideias e recomendações, na entrevista a seguir, Meira fala ainda da necessidade de as corporações educacionais se adaptarem às demandas do mundo atual. “Temos de aproveitar a janela do agora. Não podemos perder as chances de darmos os passos necessários. Sem eles, nunca daremos saltos”, assevera.

Ensino Superior: Como refletir sobre uma educação digital com toda a precariedade da internet no Brasil?
Silvio Meira: A primeira coisa é fazer um ‘pensar incremental’. O que dá para fazer com o que se tem. Do ponto de vista da tecnologia e, principalmente, de infraestrutura tecnológica, para que se tenha continuidade, performance e segurança. Vamos estar sempre desenhando soluções, ou propostas de soluções, dentro do limite da tecnologia.

O que o senhor quer dizer com “pensar incremental”?
Nosso problema é fazermos uma espécie de desenho esquizofrênico – o que queremos e faremos quando tivermos a tecnologia; e o que podemos fazer agora. Essa é a tensão criativa. Quem consegue superar os desafios do fazer agora entregará resultados, dentro do que é possível fazer agora, com qualidade. Para um conjunto muito grande de pessoas, que não têm acesso a nada, lidar com a realidade agora é o ideal esquizofrênico. Além disso, desenhar a expectativa do que queremos. Eu sei o que quero, mas o que dá para fazer agora? Se não me desenhar para o futuro, vou automaticamente me excluir dele.

Os mantenedores estão preparados para fazer esse desenho?
A maioria não. Compra-se tecnologia por fascínio, desconhecendo a potencialidade de seu uso. Faltam projetos educacionais para o uso adequado do objeto comprado. O que deveríamos estar fazendo primeiro é nos perguntar: ‘Qual tecnologia quero?’. Em seguida, ligar essa pergunta a outros questionamentos: ‘Para que vou usá-la?’, ‘Quem a usará?’, ‘Qual conteúdo colocarei nela?’, ‘Como as pessoas interagirão?’, ‘Como esse material evoluirá?’, ‘Como será preservado?’.

O senhor pode ser mais específico?
Conheço pessoas que gastaram milhões de reais para colocar seus conteúdos dentro de infraestruturas tecnológicas. Na hora em que elas se tornaram obsoletas o conteúdo foi junto. Mas o conteúdo não é obso­leto, ele continua valendo. O problema é: ao se fundir o conteúdo a uma tecnologia [dispositivo tecnológico], e essa tecnologia ficar obsoleta, ela levará o conteúdo para a obsolescência. E vale lembrar, tecnologia de informação e comunicação fica obsoleta numa velocidade monumental.

Qual seria um objeto tecnológico em específico?
Os quadros digitais brancos interativos. Todo mundo que colocou dinheiro neles jogou dinheiro fora, pois ficarão obsoletos muito antes de qualquer um fazer alguma coisa significativa com eles. Comprar tecnologia é jogar dinheiro fora. A questão é desenhar experiências interativas, conectadas, de compartilhamento de conteúdo.

O que fazer para evitarmaus investimentos?
Ao comprar softwares, materiais educacionais tecnológicos, objetos digitais, preciso imaginar o tempo da obsolescência deles que, geralmente, é de três anos, ou até menos. Então, tenho de me programar para esse período. Apesar de os recursos de investimento serem limitados, é preciso experimentar. Não se pode ficar parado. Aqueles que não experimentarem nada se tornarão cada vez mais remotamente ligados à realidade; quando tentarem acordar, não terão mais meios, recursos, pessoas, assim por diante.

Onde mantenedores podem se preparar para lidar com essa demanda?
Onde ele vai aprender o futuro? Em lugar nenhum. Porém, é preciso prática. Fazer experiências de risco controlado, que antevejam portais do tempo e espaço, o futuro. Isso significa identificar partes da instituição, em que as pessoas são mais afeitas a determinados usos tecnológicos. Usar cursos de área de tecnologia, de redes de computação, como pilotos, como forma de desorganização educacional. A instituição educacional em rede é mais desorganizada do que organizada e tenho de aprender como essa instituição é com as pessoas que já fazem isso.

O que o senhor propõe é um novo paradigma de gestão de instituições de ensino superior?
As corporações educacionais precisam acordar e entender o ambiente onde estão, que é estruturalmente outro. E não será mais um ambiente normal. Esse ambiente normal não haverá mais por causa da hiperconectividade, da transformação do mundo num ponto e da extensão da noção do agora para qualquer tempo, no qual eu consigo achar qualquer coisa deixada na rede. Ou seja, reduzo o mundo a um ponto e alargo o agora para o infinito. O tempo é uno. É tão largo quanto queira e o mundo é um ponto. Na hora que faço isso tenho o ambiente de caos, complexidade e contradições permanentes. As organizações só podem competir nesse ambiente se internamente funcionarem como redes; e se externamente, se articularem como redes. Essa é a única chance de sobreviver.

Mas como as instituições conseguem colocar esse modelo de gestão em prática?
Tentar, errar e aprender, paulatinamente, com planos, estratégias incrementais, de capacitação de pessoas, de uso de coisas que funcionam. É preciso ver os espaços para compartilhar, colaborar. Por exemplo, a Faculdade de Relações Públicas que sobrevivia sozinha, na década de 1980 com seus 200 alunos, sequer consegue ser criada hoje. Os paradigmas mudaram. As exigências regulatórias mudaram. Se tem um mercado que é afetado muito mais dramaticamente do que outros pelas transições representadas pelas tecnologias de informação e comunicação é o mercado de educação.

Para esse modelo ocorrer é necessária uma instância de controle federal?
Não. Pelo contrário. A questão é como desorganizar isso. Vamos incentivar todo mundo a usar o que se tem em seu lugar. Trabalhar com a realidade. As pessoas vão ver as coisas em ação com elas fazendo. Articular interação professor sala de aula, processo de gestão acadêmica, do timeline acadêmico, timeline disciplinar. Só fazer isso melhora radicalmente o processo educacional.

E a participação dos professores dentro desse contexto?
O professor tem de cumprir o seu dever em relação aos alunos. Eles têm de criar oportunidades de aprendizado que deem conta da ementa da disciplina. Se 100% dos professores fizerem isso, já vai ser uma mudança, uma inovação radical. Se 100% dos professores, de todos os níveis de ensino, derem conta dessa frase: ‘Cumprir a ementa disciplinar de forma adequada’, mudamos o Brasil sem usarmos nenhuma tecnologia.

E para quando o senhor prevê essa mudança? Essa “eclosão digital”?
Até 2025 vamos ver mudanças significativas. A internet comercial no Brasil tem 20 anos. Quando a geração que nasceu nessas duas décadas começar a se tornar professores, pois eles não conheceram outros ambientes. Serão professores nativamente conectados, digitais. Para os alunos, que também são digitais, não haverá diferença.

Seria então uma espécie de seleção natural, uma substituição de geração?
Sim, que vai ser posta em prática por uma geração digital que já faz isso em escala. Quando um professor entre 25 e 30 anos de idade for contratado, em 2025, ele será um professor digital, conectado, móvel, por definição. E ele exercerá sua profissão do jeito que sabe. Ele saberá ensinar de forma digital. O mundo dele é digital. Ele tratará o seu espaço como espaço digital, com ferramentas digitais. Isso se estenderá por toda a sociedade.