Confira terceira entrevista da série sobre ensino híbrido

Para Paulo de Tarso Barros, consultor e professor especialista em projetos de aprendizagem, a educação híbrida funciona como um liquidificador que combina elementos diversos como o espaço da sala de aula com o mercado por meio da junção de ferramentas, técnicas e práticas para auxiliar o estudante a navegar por trilhas de aprendizagem personalizadas que o farão, dentre outras coisas, aprender a aprender.

Na terceira entrevista da série do Semesp sobre ensino híbrido, Paulo de Tarso fala sobre o conceito a partir de uma visão de “como dar o primeiro passo para implementar o ensino híbrido explorando a gestão da mudança, os processos de desenvolvimento dos projetos e as competências necessárias que precisam ser ensinadas aos alunos”.

O que é o ensino híbrido? Quais as vantagens que esse tipo de ensino pode agregar tanto às IES, docentes e, principalmente, aos alunos?

Em uma perspectiva bem prática e pragmática, o ensino híbrido conecta várias coisas. No híbrido, eu não tenho só um ou outro, tenho tudo junto e misturado. Quando falamos de hibridez ou de ensino ou aprendizagem híbrida, é nessa perspectiva de usar diversas metodologias, ferramentas, técnicas e práticas para o ensino; e na aprendizagem também usar diversas ferramentas e técnicas que ajudem o aluno a aprender. Do lado do ensino, o professor; do lado da aprendizagem, o aluno. Quando conseguimos conectar esses dois mundos, podemos chamar de educação híbrida. Atendemos assim ao que chamamos de diversidade, a diversidade do lado do aluno, a diversidade do lado do professor e também do lado da instituição.

Ensino híbrido: “Pedagogia precisa preceder tecnologia”

Educação híbrida seria o melhor termo para ser utilizado?

Eu gosto de usar educação híbrida porque a educação como guarda-chuva abrange o ensino e a aprendizagem. Se usarmos a ideia de educação ao longo da vida, veremos esses dois processos e componentes andando juntos. No ensino, o foco é sob a perspectiva do professor e educador que tem como missão preparar as experiências de aprendizagem para que, do outro lado, os alunos possam aprender ou seguir suas jornadas de aprendizagem. De um lado está o professor, do outro lado está o aluno. O foco e os objetivos mudam. No ensino, é facilitar a experiência de aprendizagem. Na aprendizagem, o aluno é o protagonista em meio a atividades para o desenvolvimento de competências e habilidades, como a capacidade de aprender a aprender. Muitas instituições de ensino não trabalham essa ideia de preparar os alunos para aprender, elas pressupõem que todos os alunos sabem aprender, o que gera desistência e evasão, por exemplo, já que os estudantes se frustram por não conseguirem acompanhar a jornada porque não têm essa competência desenvolvida que é aprender a aprender.

Ensino híbrido: “É importante não engessar o que ainda está em construção”

O ensino híbrido e o ensino remoto se confundem, mas são conceitos distintos. Na sua opinião, até que ponto a pandemia e a adoção do ensino remoto emergencial contribuíram para o avanço do ensino híbrido?

Na minha visão, as instituições, os professores e os alunos, todos nós tendemos a ficar em uma zona de conforto. Isso é uma coisa que a neurociência explica. O que aconteceu é que a pandemia chegou e nos provocou a repensar o modelo tradicional presencial de ensino, convidando-nos a pensar em novas perspectivas e alternativas ao ensino e a aprendizagem presencial.

Por mais que não tenha sido o ideal, o ensino remoto emergencial foi o que as IES puderam oferecer; e muitas, inclusive, fizeram bem porque já usavam de alguma forma tecnologias. Isso foi positivo porque foi um convite geral para sairmos da zona de conforto e nos abrirmos a uma série de possibilidades, inclusive para continuar melhorando ao longo do tempo.

Quando a pandemia passar, enquanto umas IES seguirão adiante, outras voltarão à zona de conforto. E o que diferencia essas IES? A capacidade dessas instituições e das pessoas que estão ali dentro, diretores, coordenadores, professores, todo corpo administrativo e educativo, em desenvolver as competências para gerir essa mudança e, principalmente, a inovação. Porque a inovação deve ser contínua e parte da cultura da organização, se não as IES sempre tenderão a ficar na zona de conforto.

Muitos educadores e especialistas acreditam que as aulas presenciais são a base da educação. O que pode ser feito para que esse consenso seja superado?

Quando falamos de aprendizagem sob a perspectiva do aluno, com o ser humano no centro do processo e olhando para algumas teorias já desenvolvidas ao longo do tempo, existe um ponto central que são as emoções. Quando existe emoção, a aprendizagem é mais profunda, duradoura e significativa. Logo, sabemos que no presencial existe a possibilidade de se viver essas emoções de uma maneira mais intensa. Os alunos têm a possibilidade de sentir o outro, perceber a linguagem corporal, de olhar no olho do professor e dos outros estudantes com mais propriedade. Não que isso não possa aconteça no digital, mas sabemos que, como seres humanos, o contato e a proximidade fazem com que a conexão humana seja mais profunda.

Quando falamos de educação híbrida, de ensino e aprendizagem híbrida, é importante a possibilidade de interação humana, com uma divisão mais humana do que remota em que se possa desenvolver uma aprendizagem de mais significado, aquela que as pessoas levam por mais tempo ao longo da vida. A ideia da educação híbrida que se comenta ao redor do mundo combina tecnologia com presencial, remoto com presencial, tecnologia com analógico, digital com o analógico; ela combina a diversidade de arquétipos dos alunos, com diferentes tipos de personalidade e, principalmente, com os diferentes momentos em que cada aluno está.

A educação híbrida poderia ser a solução para dois problemas dos processos de ensino e aprendizagem atuais: a ideia de conteúdo como aprendizagem e a falha das IES em entregar profissionais adequados às demandas do mercado?

Eu acredito que sim, a educação híbrida endereça esses dois problemas. Quando falamos de educação híbrida, um ponto importante, de novo, não é sobre conteúdo, mas combinar estratégias, práticas e técnicas. Na educação híbrida, uma parte do processo de aprendizagem é delegada ao aluno. Quando ele está em casa estudando, se não desenvolver a capacidade de autogestão, o aluno não consegue fazer parte do processo, diferente do modelo tradicional em que ele senta na cadeira e espera que o professor diga tudo que ele precisa fazer. Na educação híbrida, existe a oportunidade de o aluno desenvolver competências básicas, como aprender a aprender, aprender a gerir o seu próprio processo de aprendizagem, desenvolver atitudes como curiosidade de ir buscar as coisas, não esperar que elas caiam do céu ou sejam ditas pelo professor.

Quando o estudante vai para esse mercado de contexto mais ágil e digital, as organizações buscam pessoas com capacidade de autogestão para fazer parte de equipes que muitas vezes não terão um líder ou um chefe. Mas esses profissionais terão que, juntos, tomar decisões e assumir responsabilidades. Se as IES incluem essas habilidades no processo de aprendizagem e os alunos começam a praticá-la, eles conseguem chegar mais preparados para esse mercado. Ou seja, a lacuna entre o que eles aprendem e o que o mercado está buscando diminui. A aprendizagem híbrida traz essas possibilidades para os estudantes e para as instituições de ensino formarem profissionais mais preparados.

Quais as principais dificuldades para a implantação do ensino híbrido em um país tão socialmente desigual como o Brasil? E em relação às perspectivas das IES, dos professores e dos alunos?

Na perspectiva social, a questão da infraestrutura tecnológica é um desafio e sempre será nos próximos anos diante da dimensão gigante do país, isso é fato. Como resolver isso? Talvez com parcerias públicas e privadas para acelerar esse processo, com empresas e pessoas ajudando suas regiões, junto com os governos, para entregar, construir e desenvolver a infraestrutura necessária.

Sob a ótica das instituições de ensino, existe uma questão relacionada à cultura. Quando se fala em  transformação, estamos falando basicamente da cultura, e quando falamos de cultura, estamos falando das pessoas que compõem essa organização. É preciso um ajuste no modelo mental dessas pessoas voltado para a inovação, a experimentação, os usos de tecnologias para além da produção de conteúdo, para curadoria e entendimento do perfil dos alunos, por exemplo. Para a educação híbrida dar certo, é preciso que a IES saiba exatamente quem são os seus alunos e professores, quais os conhecimentos e expectativas que eles têm, o que eles já sabem e pode ser utilizado para tornar o processo e a experiência de aprendizagem e ensino híbrido mais fluida.

Em relação ao professor, além dessa questão de preparação do modelo mental, existe ainda o fator do tempo. No geral, professores dão aulas em várias instituições de ensino superior, trabalham durante o dia e dão aula à noite, às vezes tendo que corrigir provas e trabalhos ou preparar aulas na madrugada e aos fins de semana. É um trabalho que demanda muito esforço e dedicação. Diferente da educação tradicional orientada pelo conteúdo, a educação híbrida requer muito planejamento para o desenho das experiências de aprendizagem. Isso requer tempo do professor sozinho e também com os colegas para que se construa uma experiência sólida e integrada da experiência, de ponta a ponta.

Sob a perspectiva do estudante, percebo que o desafio é também relacionado ao modelo mental, mas principalmente às competências que eles precisarão para assumir a autogestão de seus processos de aprendizagem. Uma vez que se desenha a experiência e o projeto, existirão atividades que serão de responsabilidade do educador/professor, enquanto outras serão de responsabilidade do aluno. E o aluno precisa saber, quiçá antes mesmo das aulas começarem, quais serão essas responsabilidades e o que ele precisa ter de competência, de conhecimento e de atitude para conseguir se dar bem nesse modelo. A educação híbrida tem o seu momento coletivo e individual, além do digital e do físico, dentro e fora da instituição. Nessa perspectiva, em vários momentos o aluno ficará sozinho fazendo atividades como leituras, assistir a vídeo-aulas, enquanto em outros ele terá que agir coletivamente e compartilhar experiências. Nesse momento individual, é apenas o aluno com a atitude dele, esse é um grande desafio. Os nossos alunos estão acostumados com nosso modelo tradicional de esperar que alguém diga o que eles têm que fazer; na educação híbrida ele precisa assumir essa responsabilidade.

É possível mudar esse modelo mental?

Sim, mas não de um dia para a noite. Às vezes nós não temos consciência de nossa capacidade, mas nosso cérebro é plástico e podemos aprender a qualquer momento da vida desde que se tenha saúde mental. Desde a década de 1990, a UNESCO começou um trabalho muito forte de desenvolvimento do conceito de life long learning, de aprender ao longo da vida. As escolas não nos ensinaram a aprender sozinhos e ao longo da vida. Percebemos agora que muitas instituições começam a incluir isso em seus projetos pedagógicos, não só ensinar o conteúdo técnico das áreas, mas ensinar as competências básicas de aprender a aprender. Como posso aprender a ser curioso, como posso aprender a aplicar aquilo que estou lendo na minha realidade, como posso aprender a colaborar com outras pessoas? Como posso trabalhar o autoconhecimento para quando estiver aprendendo eu perceber se estou evoluindo ou não? Nós estamos começando agora uma nova era em que se fala mais sobre essa ideia de aprender a aprender. Nesse mundo complexo e caótico em que estamos vivendo, mais importante de o que aprendemos até aqui é a nossa capacidade de aprender novas coisas rapidamente daqui para frente.

Em que pé o Brasil está em relação à educação híbrida? Há bons exemplos de IES aplicando essa estratégia de ensino e aprendizagem?

Atualmente, existe um crescimento do movimento da aprendizagem informal, as chamadas startups e edtechs, que surgiram nos últimos 10 anos com a tecnologia se tornando mais acessível. Muitas dessas organizações começaram a experimentar. Essas pequenas empresas têm mais flexibilidade e agilidade para mudar, conseguindo testar as novidades mais rapidamente. E elas já estão aplicando o conceito de educação híbrida, juntando presencial com digital e fazendo conexões com o mercado de trabalho. O Brasil possui atualmente pelo menos umas cinco grandes edtechs que receberam investimentos altos nos últimos anos e estão focando na educação híbrida. Elas estão sendo, inclusive, adquiridas por grandes grupos empresariais que representam hoje as grandes instituições formais com o objetivo de rever modelos de ensino e aprendizagem. Não sei como será o futuro, mas espero que essa junção gere bons frutos e logo.