Mudanças tecnológicas e no perfil dos alunos põem em xeque atualidade dos currículos de cursos tradicionais como direito, medicina, engenharia e contabilidade. Carga horária é um dos pontos a serem revistos

por  Svendla Chaves

180_20A companhar as transformações tecnológicas e de mercado para formar profissionais completos e atua­li­za­­dos é um desafio para o ensino superior. Pequenas mudanças podem ser feitas com a adequação de conteúdos, mas alterações mais profundas pedem reforma da grade curricular – movimento que vem ocorrendo em algumas das graduações mais tradicionais do país.

A atenção às diretrizes curriculares é a única exigência feita pelo Ministério da Educação (MEC), e os cursos brasileiros já passaram por reformas na última década para adaptação às normas.

“A legislação dá bastante liberdade às instituições, que não precisam nem mesmo seguir o calendário civil”, lembra Sérgio Roberto Kieling Franco, membro do Conselho Nacional de Educação (CNE) e pró-reitor de Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Cada instituição pode decidir o melhor momento de reestruturar sua matriz; as modificações são informadas ao MEC na renovação do reconhecimento do curso.

Em geral, as reformas se baseiam em novidades do mercado, a partir de demandas de professores e alunos, ou no desempenho do curso em avaliações como o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade). Antes de colocar as alterações em prática, é importante que as instituições avaliem os impactos que serão ocasionados em todos os seus processos, como necessidade de ajuste de espaços físicos, reorganização do corpo docente e variação de calendário letivo. “As instituições não podem fazer grandes reformulações sem analisar previamente se têm condições para tanto. Mudanças mal planejadas podem tornar precário o serviço ou desequilibrar o orçamento”, alerta Franco.

Flexibilidade tecnológica
A inovação na tecnologia do próprio ensino é um dos principais motivos de aperfeiçoamento curricular, acompanhando o novo perfil dos alunos. Grades mais flexíveis, atividades on-line e enfoque para conhecimentos práticos são características absorvidas por um número cada vez maior de cursos.

A flexibilidade no currículo foi um dos destaques na recente reforma promovida pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP) e também tem sido visada por outros cursos, como direito e medicina. Nesses casos, vale a reestruturação do quadro de disciplinas, com maior proporção de optativas, a integração com outras áreas de conhecimento e a alternância das atividades do ciclo básico com expe­riências práticas no campo profissional.

Para o presidente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Jorge Guimarães, é preciso considerar a redução de carga horária. “Os alunos que estão retornando do programa Ciência sem Fronteiras relatam que tinham em torno de 14 horas de aula por semana, enquanto no Brasil há cursos que chegam a mais de 40 horas”, comenta Guimarãres.

A diminuição das aulas expositivas, tendência nos Estados Unidos e na Europa, pressupõe aumento na dedicação do aluno. Com mais tempo livre para estudar, ele é mais exigido pela instituição de ensino. Já a duração do curso não é reduzida: a maturação do estudante continua sendo necessária. As atividades práticas e a convivência no campus, em contato com profissionais e alunos de outras áreas, complementam o conhecimento adquirido em classe.

“Todas as áreas devem passar por renovação a partir da experiência obtida com o Ciência sem Fronteiras. Ele já está incomodando todo mundo”, brinca Guimarães.

Mudanças desse tipo exigem ainda repensar a relação das instituições com os professores, usualmente contratados pelas horas em sala de aula. A remuneração dos docentes passaria então a considerar o tempo de dedicação ao aluno, que não se resume às aulas convencionais. Mas esse é apenas um dos aspectos a serem reavaliados nas atividades de docência, que se deparam com uma considerável transformação em razão das novas tecnologias.

Normas internacionais de regulamentação na área de Ciências Contábeis, indicadas pelo International Financial Reporting Standards (IFRS) e adotadas no Brasil em 2010, provocaram uma série de adaptações no mercado. Para formar contadores aptos a trabalhar com os novos padrões, as escolas de contabilidade tiveram de ajustar conteúdos ou mesmo aperfeiçoar matrizes curriculares.

De acordo com o professor da Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras (Fipecafi) Márcio Luiz Borinelli, a adoção do novo modelo afetou especialmente o perfil dos profissionais da área. “Antes a função era mais operacional, agora todo o trabalho é crítico e pensante”, explica. Com o novo paradigma, o contador precisa analisar e compreender operações e normas, arbitrando como serão contabilizados os dados.

Para incrementar o ensino, o esforço deve ser conjunto entre instituição e professores, com o objetivo de garantir a atualização do corpo docente. “Não adianta ter um bom laboratório sem ter professores preparados”, crê Borinelli. “O docente precisa se reinventar para alcançar o novo perfil do aluno. A tecnologia da informação é uma ótima ferramenta para isso.”

Uma formação mais abrangente, que englobe o empreendedorismo, tem sido reivindicação e meta nas alterações de currículo. Nesse sentido as engenharias despontam como uma das áreas com maior vocação e disposição para atingir o alvo. Esse é um dos diferenciais da reformulação na Poli-USP, que começa a valer em 2014. A instituição acredita que a formação de engenheiros generalistas e multidisciplinares é uma demanda da própria sociedade.

Reengenharia
De acordo com o coordenador da Comissão de Educação e Atribuição Profissional do Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (Confea), José Geraldo Baracuhy, a evasão nos cursos da área tecnológica é de 40%. “Se tivermos um conteúdo mais básico, deixando as especializações para a metade do curso, essa evasão diminui, e possibilita que o aluno tenha uma base comum para que possa navegar por outras áreas de conhecimento”, destaca.

Mais fácil do que reformar um currículo é elaborá-lo do zero, já adequado às novas necessidades do mercado. É justamente o que o Insper Instituto de Ensino e Pesquisa está fazendo com os novos cursos na área de engenharia, anunciados recentemente. A metodologia seguirá a do Olin College of Engineering, instituição norte-americana que se tornou referência por reunir interdisciplinaridade e conhecimento voltado à prática. “Metade das diretrizes curriculares da engenharia, elaboradas em 2001, não é técnica”, salienta o diretor de novos projetos acadêmicos do Insper, Irineu Gianesi.

Sejam quais forem as mudanças, a inovação deve estar na alma dos novos currículos. A nova configuração do ensino também vai alterar significativamente o papel do professor em sala de aula. “O projeto pedagógico tem de ser facilmente adaptável, principalmente em cursos das áreas de tecnologia. Isso exige atualizações dos equipamentos e da estrutura também”, acrescenta Baracuhy, do Confea. Segundo ele, a estimativa de pesquisadores é de que as dez principais profissões tecnológicas do mundo nos próximos 15 anos ainda não foram criadas. “Por isso é preciso estar preparado desde já”, diz.

Qualidade na mira da lei
MEC e OAB assinaram no início do ano um acordo de cooperação técnica para estudar alterações no curso de direito. Entre as propostas que estão sendo debatidas pelas seccionais da OAB está a criação de uma especialização na graduação, nos moldes da existente em medicina. Outro tema em destaque é a exigência de estágios nas diretrizes curriculares da área. O advogado Dircêo Torrecillas, presidente da Comissão de Ensino Jurídico da OAB-SP, lembra que o estágio supervisionado deve ser realizado com o núcleo de prática jurídica de cada instituição, conforme determinam as diretrizes. Ele salienta a importância de se avaliar a infraestrutura física e humana dos cursos, com incentivo ao desenvolvimento docente, valorizando mestres e doutores. “Os currículos de direito precisam ter núcleos básicos universais, mas também devem ser adequados às necessidades locais”, acredita. Para Torrecillas, não se trata de criar problemas para as instituições de ensino, mas de promover qualidade àquelas que estiverem interessadas em melhorar seus cursos. Até definir a nova política de regulação o MEC não deve autorizar novos cursos na área.

 

Saúde do currículo
A criação do programa Mais Médicos pelo governo federal e as possíveis alterações no currículo dos cursos de medicina acarretadas pela proposta vêm causando polêmica na área. A regulamentação do programa está nas mãos do Conselho Nacional de Educação (CNE), que analisa o impacto na graduação e deve se manifestar nos próximos meses.  No entanto, alguns dos princípios aplicados no Mais Médicos, como a ênfase à atenção básica e ao Sistema Único de Saúde (SUS), também estão presentes na reforma curricular da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), que deve entrar em vigor em 2015. A reforma está em discussão na instituição e mobilizou a comunidade acadêmica, por meio de entrevistas e grupos focais.