Com dinheiro e vontade de investir, indústria farmacêutica aponta para a necessidade de formação de cientistas e a ampliação da pesquisa, abrindo espaço para parcerias com instituições de ensino

por José Eduardo Coutelle

175_38investimento das multinacionais farmacêuticas nos países emergentes atingiu, em menos de 10 anos, a cifra de US$ 100 bilhões. Na distribuição desse montante, o Brasil foi o terceiro maior destino com a aplicação de US$ 13,3 bilhões provenientes das grandes empresas do setor. Acompanhado da elevada soma investida, o interesse da indústria esbarra na falta de formação de cientistas e baixa participação do setor privado no desenvolvimento de inovação, o que, por outro lado, constitui uma oportunidade de crescimento para as instituições de ensino superior.

Para alavancar a produção nacional de pesquisas na área, a fórmula invariavelmente baseia-se na tríade parceria entre setor privado, academia e governo, em que a indústria entra com o incentivo financeiro, as instituições de ensino superior com os pesquisadores e o Estado com o espaço para garantir a sustentabilidade e segurança do processo. Essa linha de oportunidade encontra simpatia tanto entre os especialistas do setor farmacêutico como nas universidades, que, embora timidamente, já ensaiam um sistema de colaboração na produção científica.

É o caso da Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde um grupo formado por pesquisadores recém-doutores desenvolve suas pesquisas de olho no mercado. “A gente tem tido um bom relacionamento com a indústria. Estamos sempre tentando nos aproximar e observar o que a universidade pode oferecer”, relata a coordenadora do curso de Farmácia,  Yoshimi Imoto Yamamoto.

Entre os projetos do Mackenzie aptos a render boas parcerias está a pesquisa desenvolvida pela instituição na área da nanotecnologia, que visa melhorar a forma de administrar medicamentos, reduzindo os efeitos colaterais no paciente. No caminho para o registro de patente, Yoshimi revela que a ideia é futuramente trabalhar o projeto em conjunto com a indústria.

Na opinião da coordenadora, a tendência dessa aproximação é irreversível e fundamental para o investimento das instituições. “Temos grande chance de acelerar esse processo. A universidade tem equipamentos, know-how e pessoas com competência. Falta é a parceria com a indústria para conseguir financiamento, material e continuar o processo. O caminho é esse”, destaca.

Longo caminho
Para entender um pouco melhor a situação é preciso compreender como funcionam as pesquisas farmacêuticas e as motivações da indústria. Quando uma nova droga é disponibilizada para os consumidores na farmácia, dificilmente se imagina que foram gastos cerca de 10 anos em pesquisa, com um custo que pode superar US$ 1 bilhão. Nesse processo de produção de medicamentos, ainda existe uma grande probabilidade de a pesquisa ser interrompida ou ganhar novos rumos a partir dos testes para minimização dos efeitos colaterais.

Alguns trâmites legais também podem se tornar um empecilho para o novo produto chegar ao mercado. Estima-se que 35% dos novos medicamentos são reprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) por serem considerados muito caros para o consumidor.

Vencer a burocracia do sistema é um dos primeiros passos para viabilizar a aproximação da universidade com a indústria, especialmente nas instituições públicas. “A universidade tenta a aproximação, mas a base jurídica não dá mobilidade”, aponta o analista da Agência de Inovação da USP, Daniel Dias. “A melhor coisa é quando o resultado de uma pesquisa é amplamente utilizado pela sociedade. Isso acontece quando se tem uma empresa parceira que aluga nossa tecnologia para explorar o mercado”, conta.

Para o analista, a questão jurídica pode gerar complicações, mas não é um impeditivo para formação de parcerias. “Não creio que existam obstáculos entre universidade e empresa. O que existe são linguagens diferentes e a necessidade de chegar ao meiotermo”, explica Dias.

Juntando os pontos
“A inovação não é um conjunto de ilhas, mas sim um continente.” A analogia do presidente executivo da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), Antônio Britto, remete justamente à dificuldade de formar parcerias – conectar as ilhas – para que ocorra um real avanço da pesquisa no Brasil. Britto é categórico ao afirmar que não há exemplo no mundo de um país inovador em que o ponto de partida não tenha sido a formação de muitos recursos intelectuais e centros de pesquisas conectados a empresas.

Parece simples na teoria, mas na prática a história é bem diferente. Entre os entraves relacionados por Britto estão a cultura e a legislação brasileiras, que criam embaraços para a aproximação das universidades com as indústrias; a dificuldade das indústrias em aprenderem o caminho certo para a formação das parcerias; a superação da divisão da propriedade intelectual e o desenvolvimento de atividades conjuntas; entre outros problemas jurídicos.

Em vista desses elementos, Britto não prevê, em um futuro breve, o desenlace desse complicado casamento. “O Brasil nunca avançou tanto na geração de conhecimento, nunca formou tantos doutores e teve tantos artigos científicos publicados. Mas o conhecimento está limitado à realidade acadêmica. Por outro lado, a atividade de inovação é de risco e a empresa brasileira acomoda-se na zona de conforto do mercado interno. Dá para contar nos dedos as empresas que se arriscam a investir em pesquisa”, contextualiza.

O diretor executivo do Instituto de Ciência, Tecnologia e Qualidade Industrial (ICTQ), Marcus Vinicius de Andrade, é ainda mais duro em relação à realidade das parcerias no Brasil. “Não existe diálogo entre universidade e indústria, e quando existe é superficial, como na realização de workshops e palestras”, afirma. Para ele, todos os envolvidos têm sua parcela de culpa. Andrade destaca a falta de iniciativa da indústria, o desinteresse e investimentos insuficientes do Estado e a formação de profissionais mais voltados para a vida acadêmica do que para o mercado.

Via de mão dupla
De acordo com os especialistas, o incentivo à formação de pesquisadores é uma via de mão dupla. “Para que tenhamos uma pesquisa do mesmo nível de países desenvolvidos é preciso ter um local para colocar, no mínimo, 300 pesquisadores doutores em tempo integral”, sugere o coordenador da Faculdade de Farmácia Oswaldo Cruz e professor da Universidade de São Paulo (USP), Paulo Roberto Miele.

Com experiência também na indústria, tendo atuado em multinacionais farmacêuticas e como diretor da antiga Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária (que originou a Anvisa), Miele ressalta a necessidade de formação de um contingente maior de mestres e doutores na área de química e a melhora da qualidade dos programas de pós-graduação das universidades particulares. Considerado o período de 1996 a 2008, o número de titulados nessa área passou de 174 para 402. De acordo com o professor, esse passo é fundamental se o país quiser seguir o modelo de parcerias realizado nos Estados Unidos, por exemplo, onde grupos de pesquisa próximos à indústria são formados nas universidades particulares, possibilitando a viabilidade de os estudos desenvolvidos desde o campo acadêmico chegarem a resultados efetivos para o mercado.

Aproximar o conhecimento da produção é a estratégia utilizada pelo ICTQ, que oferece cursos de pós-graduação na área farmacotécnica e de pesquisa clínica, com base curricular projetada pelas demandas do mercado. “Perguntamos o que é problemático para a indústria e observamos que a demanda é maior para a área de gestão do que para assuntos técnicos”, explica o diretor executivo do instituto.

Proatividade acadêmica
Outro nó a ser desatado diz respeito à propriedade intelectual das inovações. Mas para isso, o analista da USP percebe progressos na interação entre indústria e universidade. Com sete anos de experiência revisando contratos, Daniel Dias conta que as empresas estão cada vez mais atentas e enxergam as universidades como um celeiro para criação de novos produtos.

Nesse sentido, o vice-presidente da Associação Brasileira de Ensino Farmacêutico e Bioquímico, coordenador do curso de Farmácia e professor da Universidade Anhembi Morumbi, Geraldo Alécio de Oliveira, destaca a necessidade de estímulo à proatividade das instituições de ensino e seus pesquisadores. “Nós professores precisamos sair do nosso ninho e ir até a indústria, porque ela quer a parceria”, comenta.

Apesar de o contato com a indústria ainda ser tímido, o professor entende que a tendência é estreitar o relacionamento, visto que é interessante para ambos os lados. “As indústrias estão se prontificando a aumentar as parcerias e nós estamos mais preparados para recebê-las”, diz.

E para que isso ocorra, a negociação é a melhor forma de resolver impasses, principalmente quando se trata da elaboração de contratos de patente. “Como não estamos habituados a gerar patentes em parcerias, nosso jurídico não está preparado. Os dois lados tentam se resguardar.” Mas, para Oliveira, essa é só mais uma questão de experiência em lidar com a situação.

Números da formação
Num período de 12 anos, o expressivo aumento de pesquisadores nas áreas de química (131%), bioquímica (142%), farmacologia (200%) e farmácia (516%) demonstra o potencial de mercado. No entanto, de 1996 a 2008, o número de titulados nessas áreas foi de 6.861 doutores.