ENTREVISTA: Anna Penido | Edição 197

Para a diretora do Instituto Inspirare, personalização do ensino é fundamental à atual demanda de formação; além disso, é preciso repensar os papéis de estudantes, professores e também dos gestores de educação

por Udo Simons | fotos Gustavo Morita

© Gustavo Morita

Tecnologia aderente: para Anna Penido, a tecnologia precisa entrar no processo educacional de maneira mais transparente e ser usada organicamente por alunos e professores

Anna Penido não tem todas as respostas para as questões que se colocam sobre a educação e o desenvolvimento do Brasil. Talvez, nunca venha a tê-las. Aliás, nem ela nem ninguém. Isso porque respostas definitivas, únicas e acabadas no atual tempo de mudanças contínuas em todas as frentes sociais, capitaneadas, sobretudo, pelas modificações da tecnologia, são situações inexistentes. Mas algumas certezas são extremamente claras para ela. “Os modelos de ensino são tão arraigados que as pessoas agem quase por inércia.”

Diretora executiva do Instituto Inspi­rare, criado em 2011, para fomentar investimentos na educação brasileira, Anna formou-se jornalista pela Universidade Federal da Bahia e seguiu especialização em comunicação e educação com cursos pelas universidades Harvard e Columbia, ambas nos Estados Unidos, além de ter desempenhado funções no Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância).

Nesta entrevista à revista Ensino Superior, ela fala da urgência de modificar a formação inicial do professor brasileiro e focar o aprendizado nas competências dos alunos, “não na oferta apenas de conteúdo”. Ressalta, ainda, a importância de estabelecer espaços de pesquisa e desenvolvimento sobre o ensino. “Locais que mapeiem deficiências, identifiquem produtos obsoletos, tragam referências e convidem quem compõe a instituição para desenvolver soluções”, aponta.

Ensino Superior: Qual a avaliação da senhora sobre o atual processo de educação no Brasil?
Anna Penido: A educação no Brasil, assim como no mundo todo, passa por uma crise. O modelo atual de escola, de instituições de ensino superior, foi desenhado, em sua essência, para atender demandas da Revolução Industrial. É um modelo funcionalista, de educação massificada, não atende mais às demandas da sociedade contemporânea nem aos interesses do aluno do século 21.

Como esse cenário se reflete na prática?
Há uma dissonância entre o processo educativo, que não engaja e nem conseguiu educar os alunos, e um resultado que não prepara o cidadão, o profissional, o aluno.

Como resolver essa questão no país?
Precisamos abrir canais para mudança de paradigma, colocando a organização da educação em xeque. Usar a inovação para solucionar problemas corriqueiros.

O que a senhora quer dizer com “colocar em xeque” a educação?
Criar ambientes colaborativos no espaço educativo. As pessoas aprenderem com seus pares, o professor ser um mediador, não entregador de conteúdo. A tecnologia precisa entrar no processo educacional de maneira mais transparente. Tem de ser inserida não como extraordinária, em momentos especiais. Mas, sim, usada organicamente pelos alunos.

Como fazer esse uso orgânico da tecnologia na educação?
Com mais personalização, customização dos processos educativos. Considerar as diversidades. É preciso criar ambientes que favoreçam a observância das particularidades, das dificuldades e potencialidades de cada um. Isso significa desorganizar o jeito que está para organizar. Redesenhar o modelo de como a educação está pensada. Os ambientes de trabalho derrubam as paredes, criam espaços multiuso, multimídia. Temos de fazer isso nos espaços educativos.

Por que essas modificações não aconteceram ainda no setor educacional?
Pelo conservadorismo. A área educacional é muito conservadora. Todo mundo já entendeu que precisa mudar, mas o sistema tem dificuldades em se redesenhar. Nesse sentido, há uma oportunidade interessante para o Brasil. Como nosso sistema educacional tem profundos problemas é mais fácil se abrir para mudanças.

Como conseguir o redesenho?
Pela mudança cultural das pessoas. Do desapego por modelos antigos de ensino. Aqui, entra um papel fundamental das instituições de ensino superior, que reside na formação dos professores. Elas podem formar o professor para fazer o de sempre, mesmo sabendo que não dará resultado; ou podem formá-lo para buscar novas alternativas de ensino, construir novas possibilidades educacionais.

O que seriam essas novas possibilidades educacionais?
Entendermos que não é simplesmente entre­gar conteúdo. O mundo de hoje, além do conhecimento, demanda atitudes, comportamentos, entre outras competências que precisam ser conquistadas. Mesmo nos cursos profissionais não é apenas o desenvolvimento técnico o mais relevante. O aluno precisa ser desenvolvido de forma ampla e integral.

Como conseguir tamanha abrangência?
Se trouxermos, para o universo da educação, profissionais de áreas distintas como psicologia, ciência da computação, ciências aplicadas, arquitetura, entre outras. Criam-se, assim, equipes realmente multidisciplinares, havendo efetividade nos resultados.

Qual a forma para os gestores implementarem essas ações?
Criando áreas específicas de Pesquisa e Desenvolvimento. Assim como a indústria tem área de P&D, para desenvolvimento de processos e produtos, as instituições educacionais também podem ter unidades similares para pensar nos seus processos, que mapeiem deficiências, identifiquem produtos obsoletos, tragam referências e convidem quem compõe a instituição para desenvolver soluções.

Quem comporia áreas desse tipo?
Profissionais para articular, facilitar, os trabalhos. Não necessariamente profissionais de uma formação específica. Para atingir a mudança cultural, todos da instituição devem ter a possibilidade de participar de iniciativas nesses centros de inovação.

Quais iniciativas poderiam ser propostas por essa área de P&D?
É fundamental que essas unidades, quando criadas, atuem sobre problemas identificados, reais, de suas instituições. Não é inovar por inovar. Para chegar à identificação de quais iniciativas podem ser desenvolvidas, podem-se utilizar metodologias de designer think, prototipagem para envolver os professores, técnicos, de diferentes áreas, na construção de soluções. Ou seja, é a área de inovação usando técnicas específicas para encontrar soluções inovadoras.

Por que essa prática ainda não acontece de forma relevante no setor?
Porque a educação é tradicional, conservadora. Os modelos de ensino são tão arraigados que as pessoas agem quase que por inércia. Vivemos, em contrapartida, um momento interessante de repensar nosso tempo, os espaços físicos, as soluções, principalmente, os papéis de quem compõe o setor.

“Repensar o papel de quem compõe o setor” em qual sentido?
Atualmente, qual é o papel do gestor? Ele é um grande promotor de espaços de reconstrução, de redesenho que consegue juntar as inteligências disponíveis? Oferece os desafios e insumos para que as pessoas possam ser autoras mais do que reprodutoras? E qual o papel do professor? Ele é o facilitador, o mentor, o curador, o mediador? E o aluno? Ele deve ser mais autonomo, mais agente de seu processo educativo com foco e que persegue com mais tenacidade seus objetivos? São muitos os novos papéis que surgem.

Ainda há, então, mais questionamentos do que respostas às dúvidas?
Já existem muitas tendências, mas elas precisam de confirmação. Estamos no processo do repensar para implementarmos coisas, avaliar e colher evidências, as tendências que dialogam com as competências emanadas da vida. O mundo demanda um cidadão atuante, numa sociedade mediada por redes sociais, com oportunidades múltiplas. Nesse sentido quais são as competências que as pessoas precisam ter para transitar nesse mundo?

Que novo mundo é esse colocado pela senhora?
O cenário desse mundo já está dado e é marcado por três grandes questões: Novas Subjetividades, Novas Tecnologias e Sustentabilidade.

A senhora pode detalhar mais esses três aspectos?
A nova subjetividade diz respeito à forma como as novas gerações pensam, agem, se posicionam. É outra maneira de estar no mundo, de se organizar. As novas tecnologias são parte intrínseca da sociedade e têm papel de facilitador. Por fim, quando falamos de sustentabilidade, falamos de questões sociais, ambientais e econômicas, que, se não resolvidas, comprometem nossa existência. Essas questões não são tendências: estão postas.

E a relação do setor educacional com esse cenário descrito?
Ela reside em como a educação fará para responder a esse contexto. Como as pessoas são educadas para viver e construir uma vida possível. A resposta, contudo, não será única. Tampouco haverá um modelo único de ação, serão múltiplos para diferentes pessoas, cenários, demandas. A ideia é sair do padronizado para modelos mais flexíveis.

Quem ou o que poderia apontar caminhos dentro desse contexto?
Não há ninguém que responda pelos outros. As soluções serão construídas por diferentes grupos de pessoas. Todo mundo tem de se envolver na busca pelas respostas. Há uma maior responsabilização, o que demanda atitude e comportamento. Portanto, um ser humano mais forte. Estamos falando de educar pessoas para um diferencial, para uma vida com significado para elas próprias e para o coletivo. Pessoas aptas a cuidar de si, realizar seu projeto de vida, e cuidar do coletivo.

Onde os professores se encaixariam nesse contexto, nesse processo?
A proposta de haver áreas de P&D nas instituições representa a possibilidade de criar espaços de ‘respiro’ para o professor. Eles encontrariam, nesses locais, ambientes para, de forma criativa, se conectar com outras de suas habilidades. Seria um espaço para transição a um modelo educacional mais contemporâneo.

Os professores, então, precisam de espaço para criação?
Tem de haver espaços de “respiro”. Isso não é apenas oferecer a eles formação continuada, ou mais con­teúdo. Os melhores espaços de formação para o docente agir nos atuais ambientes educacionais são espaços de criação. É preciso chamá-los para pensar problemas, criar novas soluções. Assim, ele se vê autor, empodera-se, constrói coletivamente.

Mas essa proposta requer investimento de tempo e dinheiro, e não é pouco.
Não há como as instituições de ensino superior se ressignificarem para terem mais relevância se não investirem boa parte de seus recursos nesses espaços de criação e planejamento. E esses recursos são financeiros, de tempo, de pessoal etc.
É preciso investimento para fazer área de P&D. E investimento alto. Do contrário, será difícil se manter no mercado.
 
Qual é o papel das instâncias públicas nesse contexto?
Há um papel da política pública fundamental para criar ambientes favoráveis à inovação. Se a política pública for engessadora, e se não tiver linhas de fomento, vai ser muito difícil implementar processos inovadores, novos modelos educacionais. Por sua estrutura, a política pública é sempre uma das últimas a embarcar nos projetos. Mas é fundamental que haja diálogo [entre o setor e agentes governamentais].

Qual o caminho para construir esse diálogo?
Quando as instituições educacionais forem criando possibilidades de inovação e ao se depararem com entraves, os gestores públicos precisam ser convidados para o debate por intercâmbio ou incidência política mesmo. Se as instituições estiverem embasadas por evidências, tendências, estudos, e ainda têm soluções interessantes e vão com força de mobilização, articulação, o poder público ouve as reivindicações. Em resumo, precisa-se de boas ideias, bons argumentos e força de representação.

Qual a relação do setor educacional com os governos?
Temos muito que avançar. A sociedade civil ainda precisa se organizar melhor. Juntar mais os esforços. O poder público, por sua vez, precisa se abrir mais ao diálogo. Entender que sozinho não dará conta dos desafios. Se há gente hoje com flexibilidade, recursos, interesse para melhorar essa relação, esse alguém são as instituições de ensino superior privadas.

Como o setor educacional evoluirá em médio prazo?
Vamos começar com iniciativas locais em redes públicas e instituições particulares. A inovação será gerada e testada com evidências. Surgirá a necessidade de uma discussão sobre política pública para favorecer o acontecimento da inovação. Temos de trazer novos atores à discussão. O setor não conseguirá resolver sozinho todas as suas questões. É preciso multidisciplinaridade.

Dentro desse contexto, o que seria prioritário abordar?
É preciso mexer o mais rápido possível na formação inicial do professor e focar o aprendizado nas competências dos alunos, não na oferta apenas de conteúdo [aulas expositivas]. As faculdades de pedagogia, de licenciatura, têm de se transformar em espaços de inovação mais que outros espaços. Se o professor continuar a priorizar o modelo de ensino vigente, nunca resolveremos os problemas que se colocam.

Qual o papel das instituições de ensino superior particulares nesse caso?
Elas têm um trabalho fortíssimo a ser desenvolvido. Elas formam os professores que estão nas escolas públicas. A contribuição mais significativa que podem oferecer ao país, e para elas mesmas, é conseguir oferecer uma formação mais avançada, inovadora, arrojada, que permita aos professores repensarem suas práticas e papéis.

O que a senhora aponta é a quebra de um ciclo vicioso no setor?
Sim. Hoje as instituições de ensino particular não fazem mais porque os professores que formam não fazem mais. Daí, os graduan­dos, que recebem desses professores que elas mesmas formaram, vêm com dificuldades. As instituições de ensino superior têm papel fundamental na transformação desse ciclo vicioso em virtuoso. Esse processo é de responsabilidade fundamental para a sobrevivência do negócio de todas elas. Caso não consigam modificar esse ciclo, o negócio delas está ameaçado.