Especialistas debatem a importância das obras literárias no contexto acadêmico para agregar valor à produção científica no âmbito das graduações e especializações de escrita criativa por Udo Simons

 

O escritor James Joyce valeu-se de anos de estudo, investigações e´pesquisa de estilo e sociedade para criar sua obra literária, Ulysses

Pesquisadores das áreas de letras e linguística refletem sobre a importância de modificar os critérios de avaliação da produção acadêmica realizada. Com a mudança, em estudo pelo departamento específico na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), obras literárias podem passar a ter o mesmo valor de ensaios críticos. A modificação influenciaria na elaboração de programas e currículo de graduandos e docentes.

Com 30 anos de carreira na área de letras, o professor Charles Kiefer, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), é uma das vozes que reivindicam a valorização da produção literária tanto quanto o trabalho científico. Professor de escrita criativa da PUCRS, ele fez sua trajetória profissional escrevendo livros (são mais de 30 publicações e três Prêmios Jabuti – uma das premiações mais importantes da literatura brasileira) e ensinando alunos a escrever suas próprias obras literárias.

“Como sou professor universitário, de pós-graduação em escrita criativa, vivo acossado pelo que se conhece por produção acadêmica”, relata Kiefer num dos textos de seu blog (charleskiefer.blogspot.com.br). Em outras palavras, o que o professor quer expressar é o não reconhecimento acadêmico, formal, identificado por conceitos e notas sobre a produção de obras literárias – romances, contos, poesia etc. Não diz respeito, especificamente, ao seu trabalho ou sua trajetória profissional, mas a um contexto de regulação educacional.

Na prática, professores, bacharéis, mestrandos, doutorandos, sem produção reconhecida em instâncias de avaliação, como a Plataforma Lattes do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), ou indicadores Qualis da Capes (veja quadro abaixo), não são considerados produtivos. Esse fato gera um efeito dominó para graduandos, docentes e instituições de ensino superior. Todos necessitam, pelas regras do Ministério da Educação (MEC), obter algum tipo de qualificação para reconhecimento em sua carreira, aumento salarial, melhora em colocação de rankings estatísticos de qualidade de ensino, entre outros. São implicações administrativas, vinculadas à elaboração dos programas dos cursos e às carreiras dos profissionais da área.

Produção em debate

A questão levantada por Charles Kiefer começa a ganhar visibilidade fora dos fóruns literários, de letras e linguística. O assunto ainda está longe de um consenso mesmo dentro da própria área, mas um passo inicial em direção a possíveis mudanças já foi dado em julho durante o congresso da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (Anpoll), realizado em Niterói. Na ocasião, representantes da Coordenadoria de Letras e Linguística da Capes refletiram sobre o tema com coordenadores de cursos e professores da área.

O saldo do encontro foi a redação de uma carta conjunta de intenção indicando à coordenadoria responsável na Capes que, quando a produção de obras literárias estiver ligada ao objeto de pesquisa existente, tal obra passe a ser contabilizada como produção relevante ao programa do curso, consequentemente, à produção acadêmica de quem a realizar.

“Se nas próximas reuniões essa intenção expressa for de fato confirmada, tal recomendação pode ser rapidamente incluída como um item de documento técnico para a área”, comenta Sandra Goulart Almeida, coordenadora adjunta da Coordenadoria de Letras e Linguística da Capes e professora titular de estudos literários da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Um novo encontro está marcado para antes do final do ano, em Brasília.

É pela condição estipulada na redação da carta conjunta, de que o trabalho literário esteja ligado ao objeto de pesquisa do postulante, que se retoma o marco inicial da discussão sobre o tema: o valor das obras literárias e científicas expresso pelas ferramentas de avaliação da produção acadêmica.

Tradição ensaística
De acordo com o último Documento Técnico da Capes de 2007-2009, obras literárias são consideradas “indicador de impacto social do programa, porém sem validade para pontuação”. É por esse documento que se estabelecem os critérios de qualificação no segmento. O texto é claro e diz que para efeito de pontuação são considerados apenas “(…) coletâneas de caráter científico, livros com aparato teórico critico de natureza científica em edições críticas (…)”.

“No Brasil, temos uma tradição ensaística de crítica literária, inspirada pela escola francesa”, comenta Sandra. Por isso, para ela, é preciso pensar como se faz a produção de conhecimento na área de literatura no Brasil. “Será que essa produção é só crítica e ensaística?”, questiona.

Sandra lembra que ao abordar esse assunto, a área de letras segue um caminho já trilhado pelas artes, no ensino da música e da pintura. “Nas artes, por exemplo, já se estabeleceu que um ensaio crítico sobre uma pintura é tão importante quanto uma pintura em si. Estamos tentando trazer isso para a literatura, mas é uma questão que tem de ser amadurecida entre os pares, coordenadores, professores etc.”, defende.

Trabalho de observação

A demanda pela revisão dos critérios de avaliação de obras literárias em contexto acadêmico se instala mais urgentemente no Brasil a partir da criação de cursos de pós-graduação em escrita criativa (veja mais na página 35) e é reforçada agora quando há alunos se formando nas graduações e especializações da área. Isso ocorre porque nos cursos de escrita criativa o material produzido pelos graduandos são textos que tendem a ser ficcionais – romances, novelas, contos.

“Com a efetivação do ensino da escrita criativa como educação universitária gerou-se um problema de equivalência de forma”, pontua o professor Charles Kiefer. “Um aluno se dedica por quatro anos para escrever um romance e no final do seu aprendizado, ao publicá-lo, esse material não é validado pelos conceitos acadêmicos. Como isso pode ser correto?”, pondera.

Essa prática, por exemplo, faria com que o trabalho do escritor irlandês James Joyce (1882-1941), autor de Ulysses, considerada uma obra-prima da literatura moderna, fosse descaracterizada de acordo com as atuais normas de regulação. Caso ele tivesse feito sua criação no contexto acadêmico universitário brasileiro de hoje, os sete anos de trabalho de Joyce, utilizados para conceber Ulysses, seriam reconhecidos apenas como obra de “inserção social”.

As 1.112 páginas do referido romance épico em que Joyce adapta um clássico da literatura grega – a Odisseia de Homero –, transformando a viagem do personagem Odisseu em 24 horas da vida do agente de publicidade Leopold Bloom, reflete, de acordo com críticos especialistas na obra joyciana, o comportamento humano. Joyce teria tentado entender a existência do ser, suas contradições e posturas adotadas na vida.

Nesse sentido, o livro de Joyce é um trabalho literário que parte de um argumento com investigações, pesquisa de estilo e sociedade, de forte impacto social. Elementos disponíveis como matéria-prima aos alunos e professores de escrita criativa: subjetividade, emoção, observação do cotidiano, mas ainda não validados, na academia, como itens de relevância para gerar um trabalho de qualificação significativa.

 

Entenda a qualificação da produção científica
Qualis– é o conjunto de procedimentos utilizados pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) para identificação da produção intelectual dos programas de pós-graduação. Afere a qualidade dos artigos e de outros tipos de produção, a partir da análise dos veículos de divulgação, periódicos científicos. A classificação desses periódicos é realizada pelas áreas de avaliação e é atualizada anualmente. O indicativo de qualidade desses veículos é expresso por: A1; A2; B1; B2; B3; B4; B5 e C.
Plataforma Lattes – é um sistema de informação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) com base de dados de currículos, de grupos de pesquisa e de instituições. Registra a vida dos estudantes e pesquisadores no país. É ferramenta para planejamento e gestão, assim como para a formulação de políticas do Ministério de Ciência e Tecnologia (MCTI), entre outros órgãos governamentais da área de ciência, tecnologia e inovação. É hoje adotada pela maioria das instituições de fomento, universidades e institutos de pesquisa do país.