MERCADO | Edição 204

Matrículas em IES já caíram 30% em média por causa das restrições no Fies e da recessão econômica; 2016 será um ano ainda mais desafiador

por Paulo de Camargo

© iStockphotoA crise econômica e política que se instalou no país traz impactos para a sociedade como um todo: gera desemprego, eleva o custo de vida, coloca no horizonte uma nuvem de incerteza. Mas é no futuro que estão os maiores prejuízos que ainda serão contabilizados: milhares de jovens deixarão de entrar em instituições de ensino superior, já em 2016, em função de uma conjuntura adversa que comprime a renda e, ao mesmo tempo, diminui as fontes de financiamento estudantil. Apenas no processo seletivo de meio de ano de 2015, o número de novas matrículas caiu em média 30% em relação a 2014, segundo levantamento feito pelo Semesp. O resultado prenuncia um 2016 difícil para o setor educacional privado. O olho deste furacão que se anuncia tem um nome curto: Fies.

Ainda que as medidas propostas pelo governo em 2015 tenham como argumento a necessidade de uma revisão de regras com vistas a racionalizar recursos e estabelecer parâmetros de qualidade, os especialistas no setor dizem que é difícil desassociar o torniquete no principal programa público de financiamento estudantil da crise fiscal que provocou o contingenciamento de recursos de todos os ministérios e, em especial, do Ministério da Educação.

A exigência imposta pelo MEC de um desempenho mínimo no Exame Nacional do Ensino Médio (definido em 450 pontos e nota da redação diferente de zero) e a diminuição do teto de renda para se tornar elegível ao programa (que cai de 10 salários mínimos por família para 0,5 salário per capita) fazem que o setor educacional privado projete dias difíceis e corra para buscar alternativas. Será difícil manter o ritmo de crescimento verificado nos últimos anos. O número de novos contratos do Fies já despencou de 732 mil, em 2014, para 312 mil, em 2015, voltando a níveis anteriores ao ano de 2012.

Crescimento interrompido

Para entender o impacto que isso representa, é preciso compreender melhor o cenário do desenvolvimento do ensino privado brasileiro ao longo dos últimos anos.

O diretor executivo do Semesp, Rodrigo Capelato, define alguns marcos essenciais no crescimento das matrículas do ensino superior privado brasileiro. O primeiro foi a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de 1996, que, entre outros pontos, estabeleceu prazos para que os professores da Educação Básica conseguissem se graduar e licenciar, em um contexto então marcado por docentes com apenas o grau médio, sem pedagogia ou licenciatura. Havia então 1,86 milhão de alunos matriculados em cursos de graduação presenciais ou a distância, sendo que 1,1 milhão na rede privada de ensino.

Em 2002, outro impulsionador da expansão foi a regulamentação dos cursos tecnológicos de ensino superior e do ensino a distância. O país contava, então, com 3,5 milhões de alunos matriculados na graduação. A rede privada atendia 2,4 milhões de jovens e adultos.

Mas os grandes catalisadores recentes do crescimento foram a instituição do Programa Universidade para Todos (ProUni), em 2005, permitindo a renúncia fiscal com a conversão de créditos em bolsas integrais ou parciais, e o advento do novo Fies, em 2010. O programa ampliou o financiamento estudantil, aumentando a carência de pagamento, amortizando juros e estimulando o acesso por meio de campanhas de comunicação. “A rede privada cresceu rapidamente porque é muito mais ágil para responder às mudanças”, diz Capelato. Apenas com a ampliação do Fies, as matrículas saltaram de 6,4 milhões, naquele ano, para 7,3 milhões, em 2013, sendo que 5,3 milhões de alunos apenas nas instituições particulares de ensino superior.

Perda de credibilidade

As mudanças impostas ao Fies representam, segundo fontes do setor, um grande revés – e não apenas porque tornou mais difícil o acesso aos recursos. “O primeiro problema é que agora os jovens não acreditam mais no Fies e têm receio de pegar dinheiro em banco”, lamenta o diretor executivo do Semesp. Como todo sistema de financiamento está assentado sobre a credibilidade, esse fator coloca em risco a modalidade de crédito.

Com isso, as instituições privadas estão projetando aumento de inadimplência e de evasão, além de queda no ingresso. “O Fies vinha promovendo o acesso mais amplo de estudantes à universidade privada, especialmente os das classes C e D. Com as restrições ocorridas, deverá haver uma retração considerável de ingressantes a partir de 2016”, diz Sidnei Stuchi, vice-diretor das Faculdades Integradas Padre Albino, de Catanduva (SP).

É exatamente entre os jovens das classes emergentes que o impacto deverá ser maior, estima Capelato. Para ele, o que se deve observar, a partir do ano que vem, é a estagnação das matrículas para os jovens e adultos das classes A e B e queda expressiva nos segmentos C e D, que representam 53% da população brasileira. “Estas foram as camadas da população mais beneficiadas”, ressalta. Segundo as estatísticas oficiais, 75% dos alunos que recorrem ao programa de financiamento são egressos da rede pública, sendo que 80% vêm de famílias com renda de até 1,5 salário mínimo.

“Com relação ao impacto das mudanças, não há dúvida de que foi um dos maiores golpes que o mercado de educação já sofreu, tanto pelas proporções que o programa tinha tomado quanto pela agressividade e velocidade das mudanças”, reforça Fernando Domingues, diretor de inovação e novos negócios da Faculdade Eniac.

Para o pró-reitor administrativo do Centro Universitário Salesiano de São Paulo (Unisal), Nilson Leis, a forma como as medidas foram anunciadas prejudicou o setor. “A gestão equivocada do programa, sem parâmetros adequados, inviabilizou sua continuidade e restringiu de maneira expressiva o acesso a esses recursos”, critica. A Unisal estima uma redução de até 20% no número de ingressos.

Para Capelato, entre as alternativas que se desenham para o setor estão a busca de modalidades próprias de crédito, parcerias com financiadoras privadas, concessão de descontos e bolsas e postergação de recebimentos. Para ele, sofrerão mais os cursos mais caros, como as engenharias. Ao mesmo tempo, oferecerão menos riscos os cursos com melhor relação econômica, como os de educação a distância e as graduações tecnológicas.

O desequilíbrio do sistema afeta grupos que têm grande participação da receita vinculada aos programas oficiais. Em outubro, o presidente da Kroton Educacional, Rodrigo Galindo, veio a público para demonstrar sua convicção de que não haverá aumento das restrições. Para ele, a expectativa é de que se mantenha em 2016 o mesmo número de vagas novas de 2015, ou seja, entre 300 e 350 mil. O executivo acredita que a temperatura continuará baixa até que o cenário econômico dê sinais de melhora.

Dentro das linhas de ação adotadas pela Kroton, que tem 24% de seus alunos financiados por programas oficiais, estão as negociações com o governo para que se aprimore a operação do Fies, eliminando gargalos que dificultaram o preenchimento das vagas oferecidas no 2º semestre. Entre esses fatores estaria o impedimento dos candidatos a uma segunda opção quando se inscreviam para concorrer em cursos específicos. Segundo o executivo, no 2º semestre de 2015, a Kroton lançou mão apenas de 40% das vagas autorizadas no Fies, e a inadimplência permanece em nível sustentável.

Metas ameaçadas

Outra consequência dada como certa pelo setor é a dificuldade de cumprir as metas estabelecidas pelo Plano Nacional de Educação (PNE). A lei estabelece a expansão das matrículas totais para 50% da população de 18 a 24 anos. Hoje elas estão em 32,1%. Nas projeções feitas pelo setor, sem as restrições do Fies, a curva de crescimento apontava para a elevação de até 25%, em 2024. Com as mudanças, o crescimento cai para 20%. O impacto se estende para outras áreas. A evasão da graduação situa-se na faixa de 50%, em média, no Brasil. Porém, segundo dados do Inep, detalhados pelo Sindata/Semesp, enquanto 23,1% dos ingressantes sem Fies desistem no primeiro ano, isso acontece apenas para 6,7% das pessoas que utilizam o financiamento estudantil.

Para Capelato, o desestímulo criado para o ensino superior é um erro também econômico. Ele cita um estudo do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) segundo o qual o aumento da população com ensino superior completo está entre os fatores que mais impactam na elevação do PIB. O Brasil está atrás de boa parte dos vizinhos sul-americanos, como Chile, onde 74% dos jovens de 18 a 24 anos estão no ensino superior, Argentina, Colômbia e Uruguai.

A boa notícia é que há movimentação no Congresso Nacional para buscar alternativas. Há projetos para permitir o uso dos recursos do FGTS para financiamento do ensino superior, por exemplo. Está em debate também a redistribuição da oferta do Fies. O programa tem entre seus fundamentos a elevação da equidade. Há grandes diferenças entre os anos de escolaridade segundo regiões do país. Hoje, o Fies é distribuído levando em conta essas diferenças. Para Capelato, no entanto, isso não resolve o problema, pois seria mais justo olhar as microrregiões. “O Vale do Ribeira, em São Paulo, tem índices tão baixos como os do interior do Norte e do Nordeste, por exemplo, assim como há capitais nordestinas com índices elevados de matrículas”, diz.

Contudo, ainda há riscos e muita incerteza no ar. Entre eles, o medo do setor de o governo não cumprir o compromisso de pagar 13 parcelas do Fies em 2016 – como já ocorreu em 2015, quando foram pagas oito das 12 parcelas devidas. As famosas “pedaladas”, que hoje ameaçam a continuidade do governo, também assombram o sono das empresas do setor.

 

Para sair da crise
Ficou célebre a frase do executivo San Walton, fundador do Walmart, quando a economia mundial derretia, em 2008. “Convoquei uma reunião sobre a crise com meus diretores hoje e decidimos não participar dela”, disse então, marcando a posição do grupo sobre como deveriam agir dali por diante. E é assim que muitos mantenedores estão reagindo ao baque de 2015. “Apesar de uma perda já ser esperada, estamos adotando estratégias para não só combater essa perda, mas também superá-la e continuar crescendo”, diz Fernando Domingues, vice-diretor da Faculdade Eniac.Para isso, a instituição aposta em três caminhos: explorar novas praças e públicos com novos cursos ou reformulando já existentes para um nicho de mercado; ampliar a capilaridade da divulgação por meio de parcerias estratégicas com escolas de ensino médio, empresas, comércio e indústria, e trabalhar a oferta de cursos EAD e tecnólogos como opções mais acessíveis e de alto impacto na empregabilidade e qualidade de vida a médio prazo.Outras instituições, como a Unisal, optaram por racionalizar custos e reajustar as mensalidades em percentuais inferiores à inflação. Ao mesmo tempo, buscam alternativas de crédito. Este foi o caso também das Faculdades Integradas Padre Albino que, segundo o vice-diretor Stuchi, agora acelera tratativas com uma instituição financeira nacional.

Fundo próprio

Poucas instituições de ensino superior escaparam da guinada do Fies. Entre elas, o Instituto Mauá de Tecnologia, que possui desde 1966 um fundo próprio para financiamento de alunos. Com recursos de R$ 23 milhões, atende cerca de 350 alunos e funciona de modo semelhante ao Fies. Com as prestações dos alunos já formados e que ainda pagam parcelas do financiamento, o fundo da Mauá é autossustentável há sete anos e pode ser um bom exemplo para o setor.

Muitas instituições estão optando também por abrir mão do Fies. É o caso da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc). Entre as razões apontadas estão as mudanças no sistema, do ponto de vista financeiro. “Essas modificações são bastante expressivas, pois elevam a taxa de juros para o acadêmico de 3,4% para 6,5% ao ano. O pagamento de juros trimestrais também foi modificado, passando de R$ 50 para R$ 250 (ou R$ 1.000 ao ano)”, explica o coordenador de orçamentos e finanças da Unisc, Dorivaldo Brites de Oliveira.

A Unisc está entre as instituições que também buscam alternativas próprias de crédito. Em 2006, lançou o CrediUnisc, que concede financiamento de 50% no valor das mensalidades dos cursos de graduação. Para o segundo semestre de 2015 serão ofertadas 200 vagas do CrediUnisc.

Por fim, é hora de olhar com cuidado para as estratégias de marketing. As instituições de ensino já elevam suas previsões de investimento em comunicação e campanhas de captação – um esforço extra que se mostra necessário para reverter, ao menos em parte, o receio dos jovens de buscar o sonho do ensino superior.