ANÁLISE | Edição 196

Para especialistas, restrições na regulação do Fies têm mais impacto em regiões vulneráveis. Instituições do interior e grandes grupos sofrerão maior abalo no caixa pela diminuição de alunos nos próximos anos

por José Eduardo Coutelle

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A sinalização amarela de atenção já ficou para trás e cedeu espaço para a vermelha. Se as expectativas em 2014 eram de crescimento moderado para o setor acadêmico, neste ano as perspectivas são de retração. As diversas portarias baixadas nos últimos meses pelo Ministério da Educação (MEC) complementam a política do governo federal de redução de gastos e indicam que a torneira que alimenta o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) deverá permanecer fechada.

Apesar de não saber ainda de quanto será a contenção do fundo, em entrevista coletiva realizada em São Paulo, no final de fevereiro, consultores da Hoper Educação apresentaram pesquisas realizadas com estudantes e instituições de ensino e traçaram um panorama da movimentação do setor para o próximo período. Sendo pouco otimistas, chegaram a falar de quebradeira caso não haja mudanças no gerenciamento das contas. A necessidade de reformulação do planejamento e restruturação da gestão, com corte em investimentos e demissões, são algumas das medidas indicadas a serem tomadas.

Menos alunos, menos entrada

A estimativa de Romário Davel, especialista em avaliação mercadológica, é de redução contínua do número de ingressantes e, consequentemente, na quantidade de matrículas por pelo menos nos próximos dois anos. Entretanto, segundo ele, o cenário de recessão não é de todo catastrófico. Novas e inventivas medidas precisarão ser tomadas para que as instituições vençam a retração e voltem a crescer. Para Davel, assim como na natureza, a lei da adaptação definirá quem seguirá em frente e quem ficará pelo caminho. “Mudando a eficiência de gestão, com menos alunos se pode até ter um rendimento maior”, indica. Segundo o consultor, o que se pode esperar para um futuro imediato é a redução do quadro de alunos, com impacto no número de docentes, enxugamento de cursos ofertados e diminuição de cargas horárias, além de novas estratégias para contenção de gastos.

O forte e crescente aporte financeiro do governo ao fundo de financiamento, viabilizando a entrada e permanência de milhares de estudantes que não teriam condições de arcar com o custo da formação universitária, foi o que permitiu a sustentação do desenvolvimento do ensino superior nos últimos anos. Confiantes na política social de expansão do setor patrocinada pelo governo, as instituições se aproveitaram dos recursos para embalar o crescimento. A importância do financiamento chegou ao ápice em 2014, quando um levantamento do MEC detectou que cerca de 40% dos alunos da rede particular eram contemplados com o programa.

Para o consultor Pedro Mena, analista computacional e especialista em dinâmica de grupos, o Fies teria de, obrigatoriamente, sofrer um ajuste fiscal em algum momento, pois seria impossível manter o ritmo de crescimento registrado ano após ano. “Sustentável ele nunca será. O programa tem um viés de subsídio. Mas qual é o valor correto para operar bem? Com base nos números de 2012, seriam necessários R$ 6 bilhões todo ano. E ainda dependeria dos índices de inadimplência e dos novos contratos”, salienta.

Difícil compensação

Com as recentes portarias que limitam o acesso dos alunos pela pontuação no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e reduzem a quantidade de recompras dos títulos de 12 para oito vezes ao ano, a sugestão dos consultores é depender cada vez menos do financiamento estudantil. Em uma análise que propõe o pior cenário possível, as instituições poderiam reduzir para 12% o número de alunos cobertos pelo programa, e utilizá-lo apenas para a quitação dos tributos federais.

Entretanto, os problemas não param por aí. Além da imposição das novas regras, o MEC ainda limitou em 6,4% o índice de reajuste das mensalidades cobradas pelas instituições. Caso o percentual do aumento supere esse valor, os aditamentos não serão concluídos na página do Fies.

Essa medida, no entanto, é contestada por especialistas. Segundo Davel, o Estado não tem o direito de restringir a atuação do livre mercado. Além disso, o consultor da Hoper afirma que os custos das instituições superaram em muito os índices gerais da inflação. Segundo ele, só o reajuste dos professores ultrapassou 7%, e a tarifa de energia, outro principal gasto de uma faculdade, não para de subir. “Educação é serviço, e a inflação deste segmento foi muito maior”, destaca.

Diante da impossibilidade de compensar o aumento dos custos institucionais com a alta das mensalidades, considerando a gestão do caixa das instituições, como resultado prático, as faculdades se veem obrigadas a apertar os cintos e arcarem elas mesmas com o acréscimo nos custos maiores, já que não é permitido cobrar a mais dos alunos do Fies, nem é possível repassar o excedente somente aos alunos pagantes. De acordo com Davel, ambas as alternativas poderiam levar a uma avalanche de ações na Justiça.

Previsão de impacto

Mas, apesar da mudança repentina na regulação do programa, muitas faculdades já previam que algum tipo de restrição poderia acontecer e utilizavam o Fies com parcimônia. Em um levantamento com 1.465 instituições em todo o Brasil, 38% delas tinham menos de 10% de seus alunos contemplados com o financiamento, o que corresponde a um risco baixo. Outra fatia significativa, de 23%, apostou um pouco mais e manteve de 11% a 20% dos seus estudantes com a linha de crédito federal, considerado um risco leve. Por outro lado, dois segmentos investiram pesado no programa e terão de encontrar medidas criativas para lidar com o atual cenário: os grandes grupos e as faculdades de cidades do interior. Enquanto os gigantes da educação multiplicaram seus alunos graças ao Fies, ocupando de 31% a 50% de suas vagas em média, as instituições pequenas, localizadas fora dos conglomerados urbanos, são as que mais sofrerão por terem apostado fortemente no programa de financiamento, algumas com o programa representando mais da metade da sua receita.

 

Dados contados
Para mensurar o impacto das mudanças na lei do Fies, a Hoper realizou um conjunto de pesquisas quantitativas com alunos e faculdades. Entre os resultados, a implantação da nota de corte do Enem em 450 pontos foi mais impactante justamente nos estados onde é preciso maior intervenção social do programa de governo. Na região Norte, 37% dos alunos que prestaram a prova teriam o financiamento negado e no Nordeste, 33% contra 19% na região Sudeste e 21% na Sul. Com a nova regra, para cursarem o ensino superior, esses alunos terão de arcar com as mensalidades de forma integral. Além disso, um levantamento realizado com 640 alunos do Fies aponta que a renda média familiar dos estudantes gira em torno de R$ 2,5 mil e o valor despendido com educação fica na casa dos 32% da receita bruta, percentual muito acima dos 18% recomendados pela consultoria. Em uma outra simulação dos impactos da nova regra do Fies sobre quatro instituições pesquisadas, em duas delas 29% dos alunos não estariam aptos a buscar o financiamento devido à nota insuficiente no Enem. Ou seja, poderia haver um rombo no valor de quase um terço do orçamento dessas faculdades.