LEGISLAÇÃO | Edição 197

CPI dos trotes sugere a criação de cadastro de antecedentes para registrar a conduta inadequada de estudantes envolvidos em casos de agressão no âmbito das atividades universitárias

por Fernando Oliveira

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Passados pouco mais de quatro meses de investigações, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Assembleia Legislativa de São Paulo, que apurou denúncias de violência em instituições de ensino superior públicas e privadas no estado, aponta para a necessidade de responsabilização civil, penal e administrativa dos envolvidos em atos de violência ou agressões no âmbito universitário. Com mais de cem depoimentos e quase 40 sessões realizadas, a investigação partiu da ocorrência de denúncias de abusos de violações de direitos humanos, a maioria em cursos de medicina.

O ex-deputado estadual Adriano Diogo (PT), um dos responsáveis pela abertura da CPI conta que as denúncias, especialmente as de estupro, partiram da organização dos alunos em coletivos feministas e LGBTs (sigla para Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais), que serviram de apoio para as vítimas. Na opinião de Diogo, a violência sexual contra as alunas é naturalizada nas festas universitárias e trotes, apesar de o contexto das agressões nem sempre ser bem esclarecido. “O que não se diz é que elas foram embebedadas ou drogadas”, comenta. O ex-deputado lamenta o caráter institucionalizado desses atos de violência, que são passados dos veteranos para os calouros, majoritariamente pelos estudantes do sexo masculino.

No pano de fundo das denúncias de estupro, o abuso de álcool aparece como preocupação da CPI. Diogo cita o financiamento por parte de fábricas ou distribuidoras de bebidas de eventos esportivos e confraternizações universitárias como um problema a ser combatido. “São feitas parcerias com os promotores do evento. Eles [as empresas] financiam e fornecem com descontos as bebidas”, resume. Nesse sentido, uma das recomendações da CPI é a criação de um projeto de lei para inibir o patrocínio por empresas que fabricam, comercializam ou distribuam bebidas alcoólicas.

Outra recomendação do relatório final da CPI sugere um projeto de lei que cria o Cadastro de Antecedentes Universitários no Estado de São Paulo, uma plataforma na qual seriam inseridos os nomes de alunos que participassem de atos violentos ou trotes. A medida restringiria aos participantes do cadastro os direitos de colação de grau nas instituições de ensino e também a inscrição em concursos para cargos públicos.

Além da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), que encabeçou as investigações, outras instituições públicas e particulares da capital e do interior do estado foram citadas pela CPI.

Olhos vigilantes

O combate à violência dentro do campus já está sendo feito pela PUC-Campinas, uma das instituições citadas pela CPI. Após as denúncias, duas sindicâncias estão em trâmite no âmbito da universidade para averiguar o envolvimento de alunos veteranos em atos de intimidação e ameaças. De acordo com o presidente do Comitê Permanente de Acolhida aos Calouros, José Donizeti de Souza, os fatos denunciados se caracterizavam como atos passíveis de responsabilização criminal. “Por isso demandavam uma apuração que extrapolava os limites da atuação da universidade no que diz respeito à investigação de transgressão disciplinar por parte de seus acadêmicos, sobretudo para se obter provas lícitas do cometimento ou não de tais crimes”, explica.

Em 2005, a PUC-Campinas já proibia a realização de qualquer tipo de trote aos alunos ingressantes, orientada por uma resolução normativa que prevê que, se comprovada a participação, os autores respondem às penalidades previstas no regimento interno da universidade. Segundo Souza, durante o ano todo também fica disponível um “disque-trote” e foi feito o treinamento dos funcionários tanto para identificar situações de violência como para acolhimento ao calouro denunciante, além do registro em um cadastro específico.

Responsabilidades

A morte de um estudante da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Bauru, por ingestão excessiva de álcool durante uma festa promovida por universitários, traz à tona uma questão: até que ponto as instituições de ensino se responsabilizam pelo que acontece com seus alunos? Um mês depois do ocorrido, os dois organizadores da festa foram liberados, após ficarem detidos por acusação de homicídio simples com dolo eventual.

Segundo a advogada especializada em direito educacional Maria Ednalva de Lima, a instituição só pode responder legalmente por algum incidente se for organizadora ou sede oficial da atividade. No caso dos centros acadêmicos e associações atléticas, que são entidades estudantis ligadas às instituições de ensino, mas independentes legalmente, a responsabilidade se exime. “Não há responsabilidade da instituição de ensino, porque o centro acadêmico é uma pessoa jurídica que responde civil e criminalmente por seus atos, não é um órgão da instituição”, explica. No entanto, segundo Maria Ednalva, o fato de a instituição não ser a responsável não a impede de punir, de acordo com seu regimento, os alunos envolvidos em violências e agressões a outros alunos dentro e fora das suas instalações. “Como o centro acadêmico é dos estudantes, parece que a instituição é conivente com o que aconteceu, mas legalmente ela não é responsável”, diz a advogada.

A responsabilidade legal da instituição muda quando festas ou competições esportivas ocorram dentro do campus universitário. Para Maria Ednalva, eventos dentro desse espaço não podem ocorrer sem autorização prévia e a instituição deve se precaver. “Ela precisa certificar-se das condições e forma em que ocorrerá o evento e estabelecer restrições para que não responda solidariamente por eventuais danos”, sugere. É dever da instituição garantir a segurança dos seus alunos e, por isso, precisa ser criteriosa na autorização de eventos. A recomendação da advogada é que tais atividades sejam fiscalizadas para evitar possíveis danos, inclusive à imagem da instituição.

No caso da ocorrência de trotes violentos cometidos por alunos, a responsabilização legal segue os mesmos preceitos: caso a prática ocorra fora do campus, a instituição de ensino não tem responsabilidade legal pelo ocorrido. Ainda sim, caso haja o envolvimento de alunos, a instituição pode instaurar processo administrativo para apurar o ocorrido, pois não deve se omitir em relação à segurança dos seus estudantes. “Em casos de violência, ela tem o poder de instaurar processo administrativo para apurar a agressão”, orienta. Esse tipo de conduta deve estar previsto em um regimento interno e informações como essa precisam estar presentes nos contratos de prestação de serviços educacionais.

 

Violência virtual também é crime
Ainda sem legislação específica, os crimes virtuais preocupam instituições de ensino, pois, apesar de as redes sociais servirem para integrar alunos em grupos e páginas de discussão, também podem ser palco de ofensas e agressões. Uma saída polêmica para evitar esse tipo de incidente é monitorar o acesso dos estudantes aos equipamentos da instituição. Na visão da advogada especialista em direito educacional Maria Ednalva de Lima, o monitoramento dos conteúdos acessados e publicados por meio de computadores é legal. “Pode ser praticado um crime dentro da instituição de ensino por meio de um computador próprio e, para se precaver, devem ser tomadas as medidas cabíveis”, diz. Nesse sentido, ela recomenda deixar isso claro no contrato de prestação de serviço, com cláusulas específicas sobre acesso e publicação de conteúdo com uso dos computadores da instituição. Esse tipo de conduta evita que o direito à privacidade e o sigilo de correspondência, garantidos pela Constituição, sejam violados. Porém, para equipamentos de uso pessoal, as medidas não podem ser as mesmas. “Equipamentos pessoais como smartphones de alunos não devem ser monitorados, pois configuraria invasão de privacidade”, adverte. Ainda assim, Maria Ednalva defende que a instituição deve adotar as medidas cabíveis caso se sinta lesada ou haja dano a sua imagem, a fim de impedir que esse tipo de crime continue ou se propague. “Assim como na violência física, de acordo com seu regimento, a instituição pode punir os alunos que provocam agressões a outros”, finaliza.