Mudanças no sistema de ensino superior exigem um olhar cuidadoso sobre a legislação educacional. O tema das agências de acreditação e de autorregulação está na agenda do setor privado. Tornar a agenda em uma ação plausível requer capacidade de elaborar uma proposta que modifique a lei, o que exigirá articulação política no Congresso Nacional ou uma proposta que possa ser modificado por um decreto do Presidente da República ou por portaria do Ministério da Educação.

Em relação à legislação educacional, basta uma análise para constatarmos que instituir agências privadas de acreditação não é algo simples. Está na Constituição de 1988, no artigo 209º., que o ensino é livre à iniciativa privada, mas sua autorização e avaliação são realizadas pelo poder público.

Se considerarmos a lei do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes), de 2004, o artigo 6º. instituiu a Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior (Conaes), que tem o papel de supervisionar o Sinaes, e o artigo 8º. que estabelece ao Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep)  a responsabilidade de avaliar as instituições, cursos de graduação e o desempenho dos estudantes.

Autorregulação do ensino superior

O Decreto 9.235, de 2017, determina que cabe ao Inep conceber, planejar, coordenar e operacionalizar as ações destinadas à avaliação de Instituição de Ensino Superior (IES), cursos de graduação e o Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade). O decreto define também as funções da Conaes e os procedimentos de credenciamento e recredenciamento das IES.

Os três últimos parágrafos demonstram que mudanças na legislação educacional precisam ser cuidadosamente pensadas. Não podemos iniciar a defesa da criação de agências de acreditação e autorregulação se não temos propostas para adequar as agências e a autorregulação com a legislação brasileira. Da mesma forma, é preciso dar consistência aos debates, com evidências e experiências de outros países e com o estudo sobre a literatura que trata dos temas. Há bons estudos sobre esses temas.

É provável que mudanças nas dimensões que estamos nos referindo precisam ser realizadas por um decreto presidencial ou por portaria, que respeite a legislação vigente. Na lei do Sinaes fica claro que cabe ao Inep realizar as avaliações do ensino superior. Nessa perspectiva, como transferir essa responsabilidade para uma agência de acreditação?

É possível criar uma agência de caráter público, autônoma, com a participação de representantes das associações de ensino superior e de representantes da sociedade? O Inep pode estabelecer uma parceria com uma agência pública e privada para a realização da acreditação? A Conaes pode funcionar como uma comissão de acreditação? Há diversas dúvidas que os especialistas em legislação educacional precisam colocar em debate e buscar soluções plausíveis para propor modificações no sistema de ensino superior.

Temos um sistema de ensino superior formado por instituições públicas e privadas. No setor privado, as instituições possuem diferentes naturezas jurídicas. O sistema é organizado por um conjunto de leis e normas instituídas pelos agentes públicos, quer seja o Congresso Nacional e o MEC.

Ao defendermos a autorregulação é preciso ter clara consciência do que estamos propondo (conceitos e funcionamento) e o que queremos (qual a nossa perspectiva de impactos), pois como já afirmei, a autorregulação modifica o funcionamento do sistema. O Chile é um bom exemplo e pode servir de parâmetro para o Brasil. Não podemos confundir as atuais manifestações sociais no Chile como um eventual fracasso do sistema de ensino superior do país, em especial, no que se refere aos processos de acreditação.

Desde a década de 1990, o Chile avançou em experiências de autorregulação e de políticas liberais no ensino superior. Em 2006, a lei 20.129 permitiu a criação de agências de acreditação. Caberia às agências se responsabilizar, especialmente, pela acreditação de cursos de graduação.

Foi criado em 2006, a Comisión Nacional de Acreditación (CNA) e, no caso chileno, ficou claro que não basta instituir agências. É preciso vincular as agências em um sistema de acreditação. É preciso supervisionar o funcionamento das agências. O Chile tem aproximadamente 160 IES e 1,2 milhão de estudantes no ensino superior. No site da CNA existem 10 agências cadastradas. No Brasil, quantas agências teríamos em um sistema de mais de 8 milhões de estudantes e mais de 2.400 IES? Quem pode criar agências?

Imaginem um cenário em que existem diferentes agências, constituídas por grupos (políticos, financeiros, ideológicos, entre outros) com vários critérios de avaliação.. Nesse cenário, cada IES poderá optar por uma agência de seu interesse? No Chile e no México, por exemplo, as agências são autossustentáveis. As agências seriem financiadas pelas IES, que pagariam pela acreditação? Isso pode levar ao conflito de interesse?

Há uma experiência interessante que nós do Brasil precisamos conhecer. A Red Iberoamericana para el Aseguramiento de la Calidad en la Educación Superior (RIACES), criada em 2003, estabeleceu parâmetros de funcionamento e avaliação das agências. Se conseguirmos alternativas na legislação educacional para a criação de agências de acreditação, não tenho dúvida, será necessário estabelecer um diálogo com a RIACES e com outras organizações internacionais.

No Chile, a lei 21.091, de maio de 2018, praticamente desvinculou o processo de acreditação das agências. Por que os formuladores de políticas públicas tomaram essa decisão? Ficou definido que cabe à CNA fazer a acreditação.

A estratégia atual do Chile e em diversos países que possuem experiência com autorregulação é elaborar e instituir um processo de avaliação da qualidade. O foco é criar um programa que assegure a qualidade. Há diretrizes de qualidade estabelecidas pelo Ministério da Educação do Chile e há estímulos para a criação de centros de qualidade nas IES, muito parecido com nossas Comissões Próprias de Avaliação.

Os estudos contemporâneos sobre acreditação e avaliação de IES indicam que estruturas consistentes de autoavaliação, acompanhadas por planos de trabalho vinculados à missão institucional, ao planejamento estratégico e aos resultados da autoavaliação são valorizados e geram bons resultados. Talvez, uns dos caminhos para o Brasil seja fortalecer os vínculos entre acreditação, autoavaliação, padrões de qualidade e planejamento. O caminho pode ser a desregulação.

Antes de propormos a criação de agências de acreditação é preciso discutir o que queremos. Se buscamos flexibilidade do sistema e desburocratização talvez existam outros caminhos.

O setor privado poderia encaminhar para o MEC um estudo de flexibilização e desburocratização, tendo como parâmetros a legislação vigente, a literatura sobre o tema e as experiências internacionais. Temos que tomar cuidado para não colocar a “carroça na frente dos bois”.

Sugiro um diálogo com especialistas brasileiros em agências de acreditação e autorregulação. Podemos também dialogar com os chilenos, os mexicanos, os colombianos, os norte-americanos e os portugueses, entre outros.

Talvez seja interessante realizar um evento internacional, no início de 2020, sobre agências de acreditação, autorregulação e, especialmente, sobre desregulação e desburocratização.

*Fábio Reis: Diretor de Inovação e Redes do Semesp.

Colaborou com o texto, Raquel Carmona, Gerente do Departamento Jurídico do Semesp.