A autorregulação está presente nas conversas e debates sobre o ensino superior, especialmente, após declarações do Ministro da Educação, Abraham Weintraub, de apoio ao tema.

Esse tópico não é uma novidade no Brasil, muito menos na América Latina, Estados Unidos e Europa. A implementação de seus princípios representa uma mudança de orientação da política pública. Mudanças efetivas na legislação educacional precisam ser construídas a partir das características do sistema de ensino superior do país.

Temos um sistema em que os princípios do capitalismo estão presentes. Há investidores privados, há movimentação de recursos financeiros na bolsa de valores, há grupos de interesse bem organizados, há uma tendência crescente de concentração das matrículas em Instituições de Ensino Superior (IES) que pertencem a grupos educacionais.

Acredito na necessidade de valorizar a diversidade do sistema, que é formado por IES comunitárias, confessionais, com e sem fins lucrativos e de diferentes tamanhos. A concentração das matrículas pode ser uma barreira para a diversidade e para a própria inovação. Os recursos financeiros dos grupos educacionais podem ser direcionados para a inovação, mas escalá-la ainda não aconteceu de forma evidente em nosso sistema. Em todos os casos, é preciso discutir quais são os objetivos dela.

O mercado educacional movimenta a economia e é um negócio que gera renda e emprego. Como qualquer outro setor da economia, a dinâmica de compra e venda de IES, a captação de estudantes, a competição por recursos financeiros e as atividades que geram produtos e serviços são comuns e cotidianos nesse setor da economia.  Não há como esconder isso.

Há experiências internacionais de implementação de autorregulação em países como Colômbia, Chile, México, Estados Unidos e Portugal que precisam ser conhecidas. No Brasil, antes de iniciarmos a elaboração de uma proposta sobre o tema, é preciso conhecer as experiências internacionais. Sugiro a prática do bom e velho benchmarking.

Se o MEC e as associações de ensino superior da iniciativa privada acreditam na autorregulação, por que não organizam um evento sobre o tema e convidar representantes de países que já experimentaram iniciativas de autorregulação? Recomendo dialogar com o Grupo de Cartagena (um grupo de estudiosos do ensino superior liderado por Liz Reisberg, do Boston College), que reúne pessoas do Brasil, Chile, México, Colômbia, Argentina, Uruguai e Estados Unidos.  Todas com experiência em políticas públicas de Estado e em autorregulação.

Se o Brasil quer realmente avançar nesse tema, não pode cometer erros na proposta, já que seus princípios modificam a relação do Estado com as IES públicas e privadas.

A proposta de desburocratização do sistema é bem-vinda e pode se transformar em um mecanismo que fortalece a inovação e a diferenciação das propostas acadêmicas. Por outro lado, pode ser também uma armadilha ou um “tiro no pé” que atingirá especialmente as IES de médio e pequeno porte, que atuam de forma isolada: o efeito bumerangue, onde a “bala” que deveria desburocratizar o sistema acaba por prejudicar o próprio funcionamento do mesmo.

A diminuição da atuação do Estado, e do seu papel de regulador e supervisor, tende a gerar um efeito colateral e instigar o avanço do mercado educacional se favorecer IES com maior poder de lobby político e capacidade financeira de investimentos. As IES de médio e pequeno porte poderão sentir os efeitos da liberdade do mercado. Em nossa sociedade, bancos e supermercados pequenos foram adquiridos por empresas de maior porte. Assim tende a funcionar o mercado e a economia.

Temos um sistema de ensino superior em que o setor privado está em consolidação há quase quinze anos. Esse setor continuará a ser preponderante nos próximos anos. Ele tem um papel relevante no sistema, especialmente, em relação ao acesso de estudantes de baixa renda. Porém, ainda não está amadurecido em relação ao seu papel de transformação social, econômica e política do país.

A relevância do setor privado como um todo precisa ser traduzida na qualidade da formação dos egressos. Os egressos não encontram empregos, em muitos casos, porque as IES não formam estudantes com as competências adequadas para a sociedade contemporânea e com a capacidade de desenvolver atividades profissionais no mundo digital, da quarta revolução industrial.

A evidência internacional e a literatura sobre o tema demonstram que a proposta de autorregulação precisa ser elaborada com a participação das associações representativas do ensino superior, com a participação de especialistas no tema, de agentes públicos, especialmente do MEC, e com ações que permitam a comparação internacional.

Na Chile, em 1980, houve uma mudança na legislação educacional, realizada pelo governo militar “liberal” de Augusto Pinochet. Uma das intenções era fortalecer a autorregulação, com maior autonomia e pouca interferência acadêmica e administrativa do Estado na organização das IES. Segundo José Maria Lemaitre, essa atitude gerou um avanço do sistema privado, o que não é um problema. Todavia, esse setor não se mostrou comprometido com parâmetros de qualidade que já estavam consolidados. Da mesma forma, a legitimidade das IES privadas passou a ser questionada pela sociedade.

Em 1990, houve uma nova mudança na legislação para corrigir as distorções do sistema de ensino superior. A “Ley Orgánica Constitucional de Enseñanza” (LOCE) instituiu o Conselho Superior de Educação, órgão autônomo para supervisionar o ensino superior. Do conselho, nasceu a “Comissión Nacional de Acreditación de Pregrado” (CNAP), em 1999, que posteriormente foi incorporada pela “Comissión Nacional de Acreditación” (CNA), em 2006. A CNA tem funções mais amplas e é responsável por validar diferentes agências de acreditação do Chile. A partir daí, o processo de acreditação se consolidou.

Na Colômbia, em 1992, a legislação educacional implementou os princípios da autorregulação. A nova lei favoreceu o avanço do setor privado, já que estimulou a autonomia das IES e as funções da organização acadêmica e administrativa passaram a ser das próprias IES. Ao longo dessa década, a discussão girou em torno da perda da capacidade do Estado em orientar as estratégias de políticas públicas no ensino superior, já que as IES passaram a se autorregular. A Colômbia ainda vive o dilema de qual deve ser o papel do Estado na organização do ensino superior. As manifestações estudantis, em setembro e outubro desse ano, demonstram que o país ainda precisa resolver seus dilemas no ensino superior.

O México é um sistema de ensino superior semelhante ao Brasil. Prevalece as IES privadas, que representam em torno de 70% do sistema. Há aproximadamente 3.700 IES e 4,7 milhões de estudantes. Há muitas IES de pequeno porte, com poucos estudantes. Apenas 35% dos estudantes estão nas IES privadas. O país conta com 2.742 IES privadas, sendo a maioria de universidades não acreditadas. A discussão sobre qualidade na educação no México é intensa.

O México avançou no debate da acreditação. Não é o Estado o responsável direto pela acreditação do sistema de ensino superior. A FIMPES, por exemplo, é uma federação de IES da iniciativa privada, fundada em 1982. Hoje, a FIMPES tem como sua função central fazer acreditações institucionais. Apenas 113 IES privadas integram a federação e são acreditadas.

Há exemplos de acreditação que podem servir de referência. Em 2007, Portugal criou a Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES), que faz a avaliação e a acreditação das instituições e dos cursos (organização acadêmica, em especial). A A3ES segue os princípios da European Quality Assurance Register for Higher Educacion (EQAR), o que garante o alicerce internacional dos princípios da agência.

Outra referência são os Estados Unidos, onde foi criado o Council for Higher Education (CHEA), em 1996. O CHEA passou coordenar o processo de acreditação por meio de diretrizes que orientam como deve acontecer a acreditação.  O país está dividido em seis regiões, em que atuam agências que compõe o CHEA e realizam a acreditação em suas respectivas regiões. O Estado não interfere na dinâmica acadêmica e administrativa das IES. A autorregulação está presente na organização das IES. Por outro lado, é preciso reconhecer que o sistema está consolidado e suficientemente maduro. A sociedade espera e exige das IES impacto acadêmico e integração com as demandas da sociedade.

Tendo como referência os exemplos apontados acima e a reflexão e estudos realizados no Brasil, temos que responder algumas perguntas importantes antes de pensarmos em um projeto de autorregulação. Não será uma discussão genérica sobre o tema, com pouca reflexão, que irá trazer soluções mágicas de melhoria do sistema de ensino superior.

Qual é a nossa definição de autorregulação? Qual a relação entre autorregulação, autoavaliação e acreditação? Qual será o papel do Estado? Teremos algum modelo ou modelos internacionais como parâmetro? Haverá agências de acreditação? Quem irá regulamentar, supervisionar e acompanhar as agências?

Se acreditamos na autorregulação, é preciso iniciar um processo de valorização da autoavaliação, pois esse mecanismo de melhoria da qualidade acadêmica e administrativa da instituição servirá de base para ela. Será que os dirigentes institucionais estão dispostos e maduros para fazer um estudo reflexivo e analítico da IES, com a participação da comunidade acadêmica e com o objetivo de realizar as mudanças que são necessárias? É um pergunta provocativa para a reflexão.

O processo de autorregulação permite que as IES possam melhorar o desempenho para responder aos desafios do ensino superior. Ao fazer uma análise swot, por exemplo, a IES pode desenhar suas estratégias e implementar projetos sem a interferência do Estado. A IES deixa de ser reativa à legislação estatal e torna-se ativa e propositiva. O princípio da autorregulação é benéfico para as IES, mas ele não funciona de forma isolada.

A acreditação institucional torna-se relevante nesse ambiente. Será que o mercado, um ente invisível e em alguns momentos perigoso, deverá decidir se os programas acadêmicos ou administrativos são viáveis e relevantes para a sociedade ou será ela, representada por avaliadores externos, que irá legitimar os programas acadêmicos e administrativos das IES? A acreditação supõe um juízo, um reconhecimento externo. É um ato de certificação pública.

Há uma estreita relação entre autoavaliação, autorregulação e acreditação. No Brasil, como vamos consolidar esses vínculos? Espero-se que o Estado, representado pelo MEC, mantenha seu papel de supervisionar e orientar o sistema de ensino superior, por ser o ente responsável pela “coisa pública”. O Estado não pode se furtar do seu papel de organizar o sistema, conforme os interesses públicos.

Se temos interesse em avançar com a reflexão sobre autorregulação, espero também que possamos consolidar a cultura da autoavaliação. Esse processo, no interior das instituições, precisa se transformar no motor das mudanças que serão advindas de uma autorregulação adequada.

Como vamos acreditar ou avaliar as IES que se autorregulam? Teremos uma agência de acreditação ou diferentes agências? Qual será o papel das corporações profissionais? Se optarmos pela criação de uma agência de acreditação nacional e/ou por diferentes agências regionais, é preciso iniciarmos uma discutição sobre qual será o modelo, além de repensarmos a avaliação institucional, como defende Simon Schwartman. O foco da avaliação deveria ser os resultados do planejamento institucional e o cumprimento dos objetivos e das metas estabelecidas em um contrato entre a IES e o agente que a credencia.

No ensino superior, geralmente buscamos as soluções rápidas para problemas complexos. Muitas vezes nos transformamos em solucionadores de problemas, atuamos no varejo e na microrregulação. É preciso ter o devido cuidado com o desenho dos projetos e com a reflexão dos temas relevantes. Obviamente, não acredito em discussões intermináveis e inócuas. A autorregulação supõe uma política pública que pode gerar mudanças consideráveis na organização e dinâmica do sistema de ensino superior.

Espero que os “tomadores de decisão”, as “associações e pessoas influentes” e os formuladores de políticas não caiam no encanto de aprovar mudanças de forma rápida, causando impactos que não foram previstos. Insisto na reflexão objetiva e assertiva, no diálogo e na busca das melhores referências internacionais de autorregulação.

*Fábio Reis, diretor de Inovação e Redes Cooperação do Semesp.