Impulsionado pela utilização nas instituições federais, o Enem se consolida como forma de ingresso no ensino superior. O exame será o caminho alternativo ao vestibular tradicional?

Luana Lourenço
Em 2009, a realização do exame foi atrasada em dois meses porque a prova foi roubada da gráfica e o governo teve de refazê-la

 

Quando o novo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) foi lançado, em 2009, o governo anunciou a reconfiguração do exame como o primeiro passo de um caminho gradual para pôr fim ao vestibular tradicional e unificar a seleção para as instituições públicas de ensino superior do país. Dois anos depois da mudança, 39 universidades federais e grande parte das instituições privadas utilizam a prova em alguma etapa do processo de seleção ou até como critério único de ingresso na graduação. Em junho, foi a vez da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), uma das maiores e mais reconhecidas do país, aderir ao Enem como única forma de acesso a seus cursos.

Este ano, o exame será realizado nos dias 22 e 23 de outubro e tem 5,4 milhões de candidatos inscritos. Apesar do alcance do Enem, o fim do vestibular ainda não parece tão próximo como queria o governo. A transição do modelo tradicional para a seleção por uma prova unificada ainda deve levar alguns anos, e não deverá ser completa.

Ainda há vácuos a serem superados, segundo especialistas, principalmente quanto à criação de alternativas de seleção confiáveis para cursos muito concorridos, como medicina. Outro desafio é como selecionar candidatos que deixaram o ensino médio há muito tempo e não se dispõem a fazer as provas do Enem.

Para se consolidar como prova única e deixar para trás os vestibulares, o Enem precisa primeiro ganhar a adesão das grandes instituições públicas, segundo o consultor em comunicação educacional Tório Barbosa. “É cedo para decretar o fim do vestibular, isso ainda deve demorar pelo menos alguns anos, até a consolidação da operacionalização do exame e a adoção por todas grandes universidades públicas”, reflete.

A Universidade de São Paulo (USP), por exemplo, não tem planos de trocar a temida prova da Fuvest pelo Enem no curto prazo, embora admita a utilização da nota no exame como segunda fase do processo. Já a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) aderiu com ressalvas ao Enem e só vai utilizar os resultados como parte da nota final dos estudantes se os dados forem disponibilizados pelo Ministério da Educação até 15 de janeiro de 2012. Há dois anos a Unicamp deixou de aproveitar a pontuação do Enem na primeira fase do vestibular porque os resultados não chegavam a tempo.

Para Tório Barbosa, haverá uma mudança efetiva nos processos seletivos somente se todas as principais instituições brasileiras aderirem ao Enem. Ele acredita que dessa forma a tendência seria se aproximar cada vez mais do modelo americano, o mesmo que inspirou o Enem.

Nos Estados Unidos, a base do processo de seleção de estudantes é o Scholastic Assessment Test (SAT), exame aplicado nacionalmente e utilizado como parte do recrutamento de quase todas as instituições de ensino superior do país.

Apesar de inspirado na proposta do SAT, o Enem tem diferenças significativas do modelo norte-americano e a principal delas é a periodicidade de aplicação das provas. Enquanto o exame brasileiro tem apenas uma edição anual – para 2012 o governo prometeu duas provas – o SAT é realizado sete vezes por ano.

Modelo em construção
Antes das mudanças adotadas pelo governo em 2009, o Enem era criticado pela qualidade e não era visto como uma alternativa para substituir o vestibular. O exame era considerado apenas como um instrumento de avaliação do ensino médio, e não como um modelo de seleção, principalmente para as instituições mais concorridas.

Para adequar o teste aos novos objetivos do governo, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) ampliou e qualificou o banco de questões da prova e adotou a Teoria da Resposta ao Item (TRI) como método, o que deu outra cara ao exame. “A qualidade do Enem agora é muito boa, a prova é capaz de avaliar tanto conteúdo quando habilidade e competências. Além de ser passível de auditoria e fornecer ao país outros indicadores, como qualidade do ensino médio”, avalia Paula Caleffi, diretora-executiva e reitora da Universidade Estácio de Sá, instituição que utiliza as notas do Enem em seus processos seletivos.

Além da boa avaliação por instituições e gestores que aderiram ao exame, o modelo de uma prova unificada também é bem visto por quem está do outro lado dos processos seletivos: os candidatos.

O presidente da União dos Estudantes (UNE), Daniel Iliescu, diz que a superação do modelo convencional de vestibular é uma demanda antiga do movimento estudantil, e que, apesar de algumas ressalvas, o Enem pode se consolidar como a alternativa ao processo tradicional.

“O vestibular é um funil que desconsidera a trajetória do estudante, o conhecimento adquirido na escola, como se fosse possível mensurar tudo isso em apenas uma prova. O Enem me parece um avanço em relação a isso, por ter um conteúdo mais compatível com a realidade do ensino médio hoje”, considera o estudante.

Um exame nacional unificado também pode democratizar o acesso a instituições reconhecidas, segundo Iliescu. “A prova consegue chegar a mais estudantes, a cidades às quais o vestibular tradicional de algumas universidades não chega. E ainda estimula a mobilidade de estudantes pelo país”, defende.

Para as faculdades privadas, a consolidação de um exame de seleção único também pode ter benefícios para a gestão das instituições. A utilização dos resultados do Enem, mesmo que parcial, permite que os grupos reduzam os custos com processos seletivos. “O custo de captação tende a diminuir bastante, porque a prova já está feita e aplicada. E as campanhas para isso são muito caras. Hoje cerca de 3% da receita da instituição é para esse tipo de comunicação”, calcula Tório Barbosa.

Desafio de qualidade
Se por um lado a reinvenção do vestibular pode democratizar o acesso dos candidatos ao ensino superior e facilitar a vida dos gestores – principalmente no caso das instituições privadas , de outro, o fim dos processos de recrutamento mais rígidos pode pôr em risco o nível da seleção.

“Esse risco sempre existe, mas é preciso lidar com o fato de que, ao receber um estudante, a instituição tem de trabalhar para que ele possa concluir o curso com qualidade. Eventuais distorções na entrada não significam perda de qualidade ao longo da formação”, pondera o diretor de desenvolvimento da Universidade Católica de Brasília (UCB), Paulo Henrique Guimarães.

Para a reitora da Universidade Estácio de Sá, Paula Caleffi, eventuais deficiências no ingresso estão mais ligadas a falhas na educação básica do que aos processos seletivos adotados para entrada no terceiro grau. “Vivemos um momento histórico em que a régua de exigências para ingresso no ensino superior baixou. Mas isso aconteceu não só em decorrência de mudanças na educação superior, mas sim pela falência do ensino básico”, avalia. “Para entrar, o aluno precisa preencher requisitos mínimos, mas às vezes precisa de um reforço para acompanhar o nível”, justifica a reitora. Para tentar superar as distorções entre os estudantes ingressantes, algumas instituições têm investido em programas de reforço nos primeiros semestres, como mostrou a reportagem Luz amarela na graduação publicada pela revista Ensino Superior, edição nº 152.

Caso isolado
Apesar de uma transformação natural que leva ao fim do vestibular tradicional, em alguns cursos a tendência é que o processo de seleção convencional continue sendo adotado, sem perspectivas de grandes mudanças. É o caso principalmente de medicina, em que tradicionalmente há poucas vagas para muitos candidatos.

“Há cursos em que a criação de novas vagas não depende só da instituição, têm regulamentação específica. Nesses casos, a instituição nunca terá vagas suficientes para atender à demanda. Desconheço um curso de medicina, por exemplo, que tenha menos que 10 candidatos por vaga”, lembra Guimarães, da UCB.

Além de medicina, alguns cursos de direito e da área de engenharia também têm esse perfil. O consultor Tório Barbosa não vislumbra um substituto para o vestibular das carreiras muito concorridas no curto prazo. “Não consigo enxergar solução para a seleção nesses casos”, afirma Tório. Uma alternativa, que segundo ele já vem sendo utilizada por algumas instituições de ensino, pode ser a combinação de dois processos seletivos: um mais flexível para a maioria dos cursos e outro convencional para as cadeiras de medicina.

Adesão polêmica
A partir de 2012, 100% das vagas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) serão preenchidas pelo Enem, por meio do Sistema de Seleção Unificada (Sisu). A decisão, anunciada no fim de junho, reacendeu o debate sobre o fim do vestibular e causou polêmicas internas antes da aprovação.

Na resolução que formalizou a decisão do Conselho Universitário da instituição, o ex-reitor, Aloísio Teixeira, defendeu o papel de uma grande universidade como a UFRJ para o fortalecimento de um sistema único de seleção.

Teixeira também considera a utilização do Enem uma forma de democratizar o acesso à UFRJ, uma vez que estudantes de todo o país poderão concorrer às vagas sem ter que se deslocar para fazer as provas.

Já os opositores da adesão da UFRJ ao Enem argumentam que o exame nacional ainda está sujeito a problemas de segurança e operação, como os que ocorreram em 2009 e 2010, e apontam o risco de a universidade abrir mão de sua autonomia ao transferir para o governo a prerrogativa de fazer e aplicar a prova para seleção de novos estudantes.
No vestibular deste ano, a UFRJ ofereceu 9.060 vagas, 40% delas preenchidas pelo vestibular tradicional, 40% por meio do Sisu e 20% destinadas ao sistema de cotas.

Percalços do caminho
Após passar por uma reformulação e se transformar num exame de avaliação de habilidades e competências, problemas na aplicação do Enem em duas edições consecutivas colocaram em xeque a viabilidade de um teste nacional para substituir os vestibulares. Em 2009, a prova vazou após ter sido roubada da gráfica responsável pela confecção do material. O processo teve de ser refeito e a mudança atrapalhou o calendário de universidades que pretendiam utilizar o resultado em seus processos seletivos.

No ano seguinte, um erro de impressão obrigou o governo a fazer uma segunda chamada para candidatos que foram prejudicados por cadernos de prova que continham erros. Apesar dos desafios logísticos e operacionais da aplicação de uma prova unificada em um país de dimensões continentais, o Enem deve mesmo ganhar força nos próximos anos.

Leilão de descontaos
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de 1996, acabou com a obrigatoriedade de vestibular e permitiu que as instituições de ensino superior utilizem novos formatos de processos seletivos. A flexibilização trouxe à tona modalidades como as seleções agendadas, análise de currículos, entre outras.

Recentemente, um novo modelo chama a atenção: o recrutamento de novos alunos por meio de páginas na internet, como o Vestibulares.br (www.vestibulares.br), o Mais Estudo (www.maisestudo.com.br) e o Movimento Cidadania (www.movimentocidadania.com.br), que reúnem vagas de diversas instituições, inspirado nos sites de compras coletivas.

Em vez de procurar uma instituição, o candidato preenche um cadastro com informações pessoais e sobre o curso em que pretende ingressar e recebe opções que podem se adequar ao seu perfil. As propostas incluem descontos predefinidos para as mensalidades ao longo do curso.

Para o consultor em educação Tório Barbosa, ferramentas como essa podem ajudar as instituições a superar a distância cada vez maior entre a oferta e a demanda de vagas na educação superior e atrair mais estudantes, mas é preciso definir estratégias contra a evasão. “O aluno que entra na instituição dessa forma tende a evadir-se muito mais rápido. Às vezes o candidato é atraído por uma promoção, é uma decisão impensada, quase por impulso, sem considerar que está fazendo uma escolha para os próximos três ou quatro anos”, pondera.