Representantes do ensino superior concordam com a defasagem da estrutura do MEC para a avaliação institucional e de cursos, mas não abrem mão de participar da implementação de mudanças. Entenda o polêmico projeto que cria um novo instituto de regulação para o setor

 

 

 

 

 

O assunto mal começou a ser discutido pelo Congresso Nacional e já causa muita polêmica entre todos os envolvidos com a educação superior brasileira. Vem aí uma superestrutura que será responsável pela avaliação e regulação dos cursos e instituições de ensino do país. O Instituto Nacional de Supervisão e Avaliação da Educação Superior (Insaes) não existe oficialmente, já que sua criação precisa ser primeiro aprovada pelo Poder Legislativo, mas já pairam no ar muitas dúvidas em relação aos limites de atuação do órgão e ao futuro de outras estruturas do governo que desempenham as atividades que agora estarão sob a responsabilidade do órgão.

A proposta de criar uma estrutura apartada do Ministério da Educação (MEC) para cuidar das atividades de avaliação e regulação não é exatamente novidade. Desde a gestão do ex-ministro Fernando Haddad a ideia era discutida e ganhou força com Aloizio Mercadante. Ainda no discurso de posse, o atual ministro mencionou a necessidade de aprimorar os mecanismos para assegurar a qualidade do ensino, destacando que 75% das matrículas estavam com o setor privado.

“A nova tendência de fusão e concentração do ensino particular em grandes grupos econômicos, bem como a abertura dos capitais desses grupos nas bolsas de valores, demandam forte sistema de avaliação, regulação e supervisão. Não podemos perder a gestão estratégica de nossos recursos humanos”, disse o ministro à época, já antecipando um dos pontos mais controversos do projeto que cria o Insaes – a necessidade de aprovação prévia em caso de fusão e aquisição entre instituições de ensino superior.

Estrutura insuficiente
Entre reitores, mantenedoras, professores e advogados há pelo menos um consenso a respeito do tema: a atual estrutura de governo responsável pela avaliação e a regulação não consegue dar conta da tarefa. Com a expansão do ensino superior, o volume de processos cresceu e é necessário aguardar longos períodos para receber um parecer.

O próprio MEC reconhece a deficiência na justificativa do projeto de lei que foi encaminhado ao Legislativo. “Com a necessária ampliação da rede de instituições públicas e privadas de educação superior, bem como a de oferta de cursos de graduação para o cumprimento das metas do novo PNE [Plano Nacional de Educação] (…), a capacidade operacional do ministério para o efetivo exercício dessas atribuições legais de avaliação, regulação e supervisão da educação superior (…) estará inviabilizada”, diz o texto.

Mesmo dirigentes da rede federal de ensino superior concordam que a atual estrutura do MEC é deficitária. “Basta dizer que até hoje nenhuma instituição foi plenamente avaliada pelo Sinaes [Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior]. Para isso seriam necessárias condições técnicas e administrativas que hoje o MEC não demonstra ter porque o modelo é muito complexo”, aponta o secretário-executivo da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), Gustavo Balduíno.

Atualmente, duas estruturas no governo respondem pelas principais tarefas da avaliação e supervisão. A maior delas, a Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior (Seres), criada na gestão Haddad, na prática deixará de existir após a criação do Insaes. Já o Inep, que tem uma diretoria responsável pela avaliação da educação superior, terá seus poderes reduzidos. De acordo com o projeto, permanecerá sob a responsabilidade do órgão a aplicação do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade), mas outras atividades como a construção dos indicadores e as visitas in loco deverão ser transferidas para o Insaes.

“De modo geral, não há nada nesse projeto de lei que não seja competência de algum órgão que já existe hoje. A novidade é reunir essas atribuições em um órgão só”, avalia o presidente da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação (CNE), Gilberto Garcia.

Ele acredita, porém, que o próprio conselho não deverá ser afetado pela criação do novo instituto, pois o projeto de lei atribui ao Insaes a missão de “autorizar, reconhecer e renovar o reconhecimento de cursos de graduação e sequenciais”. Por isso, a autorização de funcionamento de instituições deve permanecer como função do CNE. Ainda assim o colegiado formou um grupo de trabalho para aprofundar as discussões sobre a nova autarquia.

O conselheiro engrossa o coro a respeito da precariedade da estrutura no MEC para atender à atual demanda do sistema. “Temos plena consciência de que a atual estrutura da Seres é insuficiente para o crescimento vertiginoso do setor nos últimos 20 anos. Não só insuficiente, como tem sido prejudicial ao sistema. A situação hoje está no limite – ou já passou do limite. As instituições estão sendo mais prejudicadas do que apoiadas na atual estrutura, sobretudo no que diz respeito à demora dos processos”, defende Garcia.

Para o presidente da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES), Gabriel Mario Rodrigues, o modelo escolhido pelo governo criará um órgão mais poderoso que o próprio MEC. “A proposta da criação do Insaes faz com que o processo de avaliação passe a ter um só agente condutor e vários coadjuvantes, em que todas as responsabilidades de credenciamento, avaliação e regulação do setor ficam concentradas nas mãos desse agente, que acaba com poderes maiores que o próprio MEC”, assevera. Para Gabriel, é fundamental a participação de toda a sociedade para o êxito da educação superior brasileira. “Não precisamos de um grande órgão para auditar as instituições de ensino superior”, avalia.

Novas prerrogativas
Se de modo geral as funções que serão assumidas pelo instituto já são desempenhadas hoje por outros órgãos governamentais, nas entrelinhas o projeto de lei também garante ao Insaes algumas novas prerrogativas.

Uma delas é a possibilidade de designar interventores em caso de descumprimento à legislação educacional. Outro poder garantido ao instituto é o de aprovar previamente aquisições, fusões ou cisões de instituições de ensino particulares. Parte do setor privado acredita que os dispositivos são sinônimo de intervenção estatal.

De acordo com o advogado Kildare Meira, especialista em legislação educacional, esse polêmico aspecto do projeto contraria a liberdade de associação, que é uma garantia constitucional. “Uma intervenção do estado autorizando fusão e aquisição é algo que não existia antes. E o projeto faz isso sem dizer qual é o foco, a motivação dessa intervenção. O Cade [Conselho Administrativo de Defesa Econômica] também faz esse trabalho, mas tem uma motivação clara [garantir a livre concorrência de mercado]. Do jeito como o projeto está fere sim a liberdade de associação”, pondera Kildare.

Outra novidade que virá com o Insaes é a criação de uma “taxa de supervisão da educação superior”, recolhida semestralmente pelo órgão. O valor variará entre R$ 5 e R$ 7 por aluno, a depender do número de matrículas. A criação desse novo tributo também deverá ser questionada enquanto o projeto tramitar no Congresso Nacional. Mas, para Kildare, o principal problema do projeto que cria o instituto é perpetuar a “insegurança jurídica” das normas que regulam o setor.

E novas portarias e regulamentações devem vir por aí. “As regras da regulação no país são confusas, elas têm como marca a insegurança jurídica. Cada vez que muda o secretário, vem uma portaria nova. Não existem critérios bem definidos, eles estão sempre em construção. Nesse sentido, o Insaes não aponta nada de diferente porque o recheio do bolo vai ficar para a regulamentação posterior. Em vários momentos o texto [do projeto de lei] aponta que as regras serão definidas conforme portaria, regulamento etc.”, pondera o especialista.

Modelos distintos
Enquanto o Brasil segue pelo caminho de criar uma autarquia para regular o sistema de ensino superior, em outros países cresce a adesão ao modelo de agências de acreditação, a maioria independentes, para assegurar a qualidade do ensino. Diretor de qualidade da Universidade Miguel Hernandez (UMH), na Espanha, o professor Jose Joaquim Mira diz que as agências de acreditação facilitam o acesso dos alunos a informações que possam orientá-los na decisão de onde estudar. Ele é também colaborador da Agência de Avaliação e Acreditação da Espanha (Aneca).

“A maioria dos países nos últimos anos desenvolveu agências para assegurar a qualidade do ensino universitário para garantir a cidadania e a qualidade da formação profissional dos estudantes”, aponta. Outra vantagem do modelo é a possibilidade de oferecer informação para o mercado de trabalho internacional sobre a qualidade do ensino das instituições. “A possibilidade de intercâmbio profissional de atuação em outros países impulsiona essa demanda”, aponta Mira.

“Essa necessidade obriga os sistemas a facilitarem o reconhecimento de título e um caminho para isso é que as agências reconhecidas para tal avaliem a qualidade dessa formação e informem se determinados títulos são ou não de confiança para que o profissional possa exercer sua profissão em outro país”, diz.

Muitas agências de acreditação, como na Europa, têm financiamento público, mas conseguem trabalhar de forma independente. Na Grã-Bretanha, as entidades privadas, principalmente na área econômica, vêm ganhando boa reputação, indica Mira. “As agências da Europa e América Latina, por exemplo, contam com financiamento público, e procura-se que elas atuem de forma independente gerando uma autonomia tanto na gestão de fundos como nas decisões que possam adotar na elaboração de normas”, explica. Para ele, delegar a tarefa da avaliação e regulação exclusivamente a um órgão de governo, como será o Insaes, pode significar perda de credibilidade do processo.

Tramitação

Mas a discussão de qual seria o modelo ideal para o Brasil deve ficar mesmo para o Congresso Nacional, já que não houve diálogo prévio entre o MEC e as instituições durante a elaboração do projeto do Insaes. “Acreditamos que a ideia da criação do instituto é louvável. Todavia, a criação de uma autarquia pode atropelar um processo desenvolvido ao longo dos últimos anos. Para existir um real processo de avaliação todos os atores do setor precisam estar envolvidos”, critica o presidente da ABMES, Gabriel Rodrigues.

Ele defende que falta tempo para o debate necessário, já que a matéria já está no Congresso Nacional para ser aprovada “a toque de caixa”. Mas o debate não será fácil. Até a última semana de setembro, o projeto de lei já tinha recebido 81 emendas de parlamentares.

“A nossa primeira impressão é que faltou um diálogo com todas as instituições de ensino. O projeto é importantíssimo e não foi discutido da maneira que merecia”, defende o deputado Izalci Ferreira (PSDB-DF), que já apresentou mais de 50 emendas ao projeto. Para o parlamentar, a matéria tem vários pontos “problemáticos”, mas ele acredita que um dos dispositivos que irá causar mais polêmica é a criação da taxa de supervisão.

“Todas as empresas já pagam impostos em todos os segmentos. Um setor pagar para ser fiscalizado, isso não existe. Essa atribuição já faz parte das obrigações do poder constituído, não faz sentido criar uma taxa nova se já se paga o imposto”, acredita.

O advogado Kildare Meira, no entanto, acredita que não é o caso de tentar barrar a aprovação, mas incluir as instituições na mesa de negociação. “Acho que o momento não é de discussão da legalidade, mas uma discussão política. Existem coisas no projeto que são de legalidade duvidosa, mas isso não pode barrar a aprovação. Eu não conheço ninguém que defenda que o modelo atual, como está hoje, não precisa mudar”, pondera.

O presidente da Comissão de Educação e Cultura (CEC) da Câmara, Newton Lima (PT-SP), garante que serão feitas audiências públicas para que o debate possa ser amadurecido. A CEC é a primeira instância em que o projeto será avaliado na Casa. Depois seguem as comissões de Trabalho, Administração e Serviço Público; Finanças e Tributação e Constituição, Justiça e Cidadania. Como tramita em caráter terminativo, não há necessidade de ser aprovado em plenário antes de seguir para o Senado Federal.

Os itens do Insaes
Conheça os principais pontos do projeto de lei que cria o novo instituto:
– Será responsável por formular, desenvolver e executar as ações de supervisão e avaliação de instituições e cursos de graduação;
– Competirá ao instituto realizar avaliações in loco referentes a processos de credenciamento e recredenciamento de instituições e cursos, além de diligências para verificação das condições de funcionamento;
– O Insaes poderá decretar intervenção em instituições de educação superior;
– Aprovará previamente aquisições, fusões, cisões, transferências de mantença e unificação de instituições;
– O Insaes será dirigido por um presidente e seis diretores. O presidente terá assento na Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior (Conaes) e no CNE;
– Serão criados 550 cargos – de analistas e técnicos – a ser preenchidos por concurso público para compor o quadro de funcionários do novo órgão;
– O instituto poderá impor algumas penalidades às instituições de ensino que descumprirem a legislação educacional. Entre elas, desativação de cursos, suspensão temporária da autonomia, suspensão por até um ano dos representantes legais da instituição para o exercício de atividades de gestão e multa de R$ 5 mil a R$ 500 mil.

 

Instância de discussão
A criação do Programa de Aperfeiçoamento dos Processos de Regulação e Supervisão da Educação Superior (Pares), dias antes do envio para o Congresso Nacional do projeto de lei do Insaes, promete melhorar a gestão da atividade e dar mais agilidade aos processos. A principal novidade é a criação de um conselho consultivo, responsável por discutir alterações nas regras de supervisão e regulação. No grupo composto por nove membros, têm assento representantes do MEC, Inep, outros órgãos do governo, e do setor de ensino superior particular, das instituições comunitárias e universidades federais. “A composição eclética procura que diferentes olhares sejam capazes de identificar eventuais falhas e omissões”, explica o vice-presidente de Planejamento e Ensino da DeVry Brasil, Maurício Garcia, um dos membros do Pares, representante das instituições particulares. A criação do Insaes ainda não foi discutida no âmbito do Pares, mas é provável que o programa também seja gerido pela nova autarquia, já que as atribuições da atual secretaria de regulação (Seres) deverão ser transferidas ao Insaes. Para Garcia, há um grande avanço, pois o setor privado tem pela primeira vez lugar cativo em uma comissão do MEC e poderá analisar previamente as normas regulatórias.