As mulheres agora têm o grau ou profissão registrados de acordo com o sexo: doutora, engenheira, mestra, bacharela… A lei, no entanto, gera controvérsias entre especialistas

As mulheres são maioria no ensino superior brasileiro. Segundo o último Censo da Educação Superior, 57% dos 6,7 milhões de universitários são formados pelo público feminino. O peso dessa força feminina ganha agora mais visibilidade com uma lei que determina o uso obrigatório em diplomas da flexão de gênero para nomear profissão ou grau.

Assim que a lei foi sancionada, em abril passado, já causou alvoroço. Especialistas consideraram a iniciativa um erro, por confundir o título com tratamento. Usar o gênero masculino para denominar a profissão ou o grau obtido por mulheres é considerado uma tradição do idioma por muitos, que acusam a confusão entre sexo e gênero gramatical contida na premissa à lei. A pessoa (mulher ou homem) recebe o título de “doutor”, mas depois, se for o caso, é chamada de “doutora”. A discussão talvez se deva ao fato de o título acadêmico flu­tuar no discutível domínio do gênero neutro, representado em português pela forma masculina.

Porém, para Serys Slhessarenko, autora do projeto que deu origem à lei, a prática revelaria um preconceito. A iniciativa visa, assim, dar um passo em direção à igualdade de gêneros no país. Outros já foram dados. O Palácio do Planalto e suas agências de notícias, por exemplo, adotaram o feminino “presidenta” nas referências a Dilma. Escritores e pesquisadores de vários lugares do mundo têm adotado a mesma prática como política de valorização feminina.
Autoestima
Para Antonio Carlos Xavier, professor de português e linguística da UFPE, a curto prazo a lei pode passar despercebida devido ao recente acesso que a brasileira tem ao ensino superior. A médio e longo prazos, no entanto, a lei pode representar um sinal de autoestima para as profissionais brasileiras.

“A lei instaura um princípio da flexibilidade. Juntamente com a tolerância, a flexibilidade é um ingrediente essencial à sobrevivência pacífica entre homens e mulheres de diferentes classes sociais, ideologias, etnias e religiões sobre um mesmo espaço”, avalia Xavier. Para ele, as grandes mudanças começam com pequenas atitudes. “Estas passam pela língua mediadora sem a qual aquelas jamais aconteceriam. A grandeza de valores de uma sociedade se revela e se solidifica na e pela língua”, justifica.

A professora de língua portuguesa da USP Zilda Aquino concorda com a sanção da lei. “Numa sociedade machista como a nossa usa-se só o nome masculino mesmo ao referir o feminino. É apagamento da mulher. No século 21 as mulheres já conseguem dirigir empresas como a Petrobras e o país. A lei promove e protege a mulher”, afirma.

Existem divergências quanto ao caráter da lei. Para Paulo Luis Capelotto, procurador do Estado aposentado e professor de Direito Internacional, todas as profissões são elencadas pelas secretarias da Educação pelo gênero masculino, não por exclusão ou machismo, mas para facilitar o uso dos termos. “O artigo 5º da Constituição fala sobre igualdade entre homens e mulheres. A sociedade mudou, a estrutura familiar mudou. O próprio Estado prefere transferir imóveis populares para a mulher. Isso demonstra a importância e a responsabilidade dela. A lei só se justifica se for um anseio da sociedade”, explica.

Na opinião do gramático Evanildo Bechara, o texto da lei contém enganos de teoria gramatical. “O gênero do substantivo é inato. Há um animal feminino que se chama ‘gata’ e um masculino que se chama ‘gato’. ‘Cobra’ se aplica tanto a machos quanto a fêmeas. Garanto que a presidente não foi bem assessorada por especialistas em teoria gramatical”, adverte. De acordo com Bechara, essa lei confunde o título com o uso do gênero. “Pela tradição, o masculino engloba os dois. Quando digo: ‘Almocei na casa de meus tios’, tanto me refiro a tios como tias. O masculino é usado nos diplomas porque engloba o feminino, seguindo a tradição da língua”, comenta o gramático.

Uso popular
Para Neusa Maria Oliveira Barbosa Bastos, professora do departamento de português da PUC-SP e do centro de comunicação e letras do Mackenzie, a lei contraria o desenvolvimento da língua, em que alterações são sempre resultado do uso popular. “A tradição fixada pelo uso e pela norma aponta para o registro ‘doutor’, ‘mestre’, quando se trata do título. Quando nos dirigimos à pessoa que porta o título, usamos a marca de gênero, como em ‘doutora Sônia’. Mas ao afirmamos o título de Sônia, dizemos ‘mestre em língua portuguesa, chefe do setor X e assim por diante”, compara Neusa. Na opinião da professora, se a norma linguística é o uso relativamente estabilizado de uma língua, espera-se que o idioma se desenvolva naturalmente, sem que se criem leis para determinar isso ou aquilo.

Márcia Molina, doutora em linguística e semiótica pela USP e coordenadora dos cursos de licenciatura da Universidade de Santo Amaro (Unisa), afirma que discussões acerca do gênero de certas palavras remontam, no Brasil, ao final do século 19 e início do 20, quando ainda não possuíamos expressões para designar funções até então nunca exercidas por mulheres. A questão do uso do feminino para “presidente” foi alvo de discussões já naquela ocasião, porque a regra geral de flexão nominal informa que os substantivos terminados em o fazem o feminino em a. Em alguns casos, isso ocorre nos terminados em e, como “elefante/elefanta”. “‘Presidente’ é uma palavra de formação latina, que oculta em sua origem uma designação verbal, que significa aquele que preside. ‘Residente’, aquele que reside. Mas essa origem se perdeu. Assim, o que temos na memória hoje são os substantivos terminados em e. Como em ‘elefante’, nada obstaria usarmos ‘residenta’, embora soe estranho para muitos”, avalia a professora.
Para Márcia, legislar a língua é sempre delicado, mas o uso é o fator decisivo. “Nossa querida Dilma é nossa presidenta, mas não deixaria de ser tão reta, correta, justa e eficiente se fosse tratada por ‘presidente’’’, diz.
Necessidade
O filólogo Manoel Mourivaldo Santiago Almeida, da USP, avalia que a lei apenas ampara uma necessidade de comunicação já solucionada no cotidiano brasileiro. “A lei apenas normatiza, no papel, para passar a valer também no papel, o que já é norma na prática cotidiana. Quer dizer: agora, amparadas por lei, as instituições formadoras podem escrever, nos diplomas e certificados que emitem, ‘doutor fulano de tal’ ou ‘doutora fulana de tal’. Assim como já podemos observar, no dia a dia, quando as pessoas do sexo masculino ou feminino são tratadas pelo título que obtiveram ou pelo nome da profissão para a qual estudaram”, avalia.

Mesmo assim, Bechara desconfia do resultado. “Espero que essa lei seja tão desobedecida quanto a lei baixada em meados do século passado pelo presidente Juscelino Kubitschek, obrigando ao uso do feminino nos cargos de repartições públicas e que acabou não pegando”, recorda o gramático.

Contudo, que mal há em que uma mulher receba o título oficial de “doutora” em vez de “doutor”? Ou de “mestra” em vez de “mestre”? “Quem quiser encontrar motivos para criticar a lei tem somente a opção de acusá-la de ser óbvia. Mas ser óbvio, às vezes, é necessário. Parece ser o caso dessa lei, que talvez tenha nos mostrado o processo ideal para o surgimento de toda e qualquer lei: primeiro, observa-se o fato que é da prática cultural de uma sociedade, considerando seus valores e não valores morais e éticos, para depois, pela escrita, torná-lo válido juridicamente”, retruca Manoel Mourivaldo, da USP.
Se depender de linguistas como ele, não há motivo para estranhar a lei. Desde que a flexão de gênero se limite a palavras consagradas, como “doutora”, “mestra”, “médica”, “engenheira” e outras já consolidadas ou que venham a incorporar-se naturalmente à língua, não há razão para choradeiras. (Colaborou Marcos Gomes)

Diplomadas podem requerer novo documento
A presidente Dilma Rousseff transformou na lei 12.605 o projeto de lei 6.383 de 2009, que por sua vez teve origem em outro projeto, de 2005, de autoria da então senadora Serys Slhessarenko. Segundo a lei, sancionada em abril passado, as instituições de ensino públicas e privadas devem expedir diplomas e certificados com a flexão de gênero correspondente ao sexo da pessoa diplomada, ao designar a profissão e o grau obtido. O artigo 2º da lei indica que as pessoas já diplomadas poderão requerer, de graça, nova emissão de seus diplomas, com a correção.