ENTREVISTA com Oscar Vilhena Vieira | Edição 203

Para diretor da FGV, o leque de matérias reguladas pelo direito aumentou muito, o que torna muito difícil ensinar nos mesmos moldes em que o ensino jurídico se consagrou no Brasil

por Rubem Barros

Gustavo Morita

Oscar Vilhena Vieira: a escola precisa ser mensurada a partir da sua ambição

A inovação no campo do ensino de direito tem acontecido nas instituições que se preocuparam em rever sua missão após as grandes mudanças ocorridas no Brasil nas últimas duas décadas. É o que diz Oscar Vilhena Vieira, atual diretor da Escola de Direito de São Paulo (FGV Direito SP), instituição atualmente na presidência da Liga Global das Escolas de Direito.

Professor de direito constitucional, direitos humanos e direito e desenvolvimento, Vilhena faz a seguir uma análise panorâmica do ensino jurídico no Brasil, comparando a questão da regulação a outros países e defendendo a ideia de que as escolas precisam ser mensuradas a partir de suas ambições.

Qual a sua avaliação dos cursos de direito hoje ofertados no Brasil?
O Brasil é o país que mais tem cursos de direito no mundo. Dados de 2013 apontam 1.149 cursos de direito. Os Estados Unidos, com índice de litígio duas vezes maior do que o nosso, têm 220 cursos credenciados, 25% do que temos aqui. Há outros 60 cursos não credenciados no Estado da Califórnia, que não exige credenciamento. Outros países com um número grande são a China, rumando para 600 escolas, a Índia e o México. Mas Índia e China têm população muito maior do que a nossa. Ou seja, temos um número muito grande de escolas de direito, muito distintas entre si.

Com quais perfis?
Uma crítica superficial diz que boa parte dessas escolas não deveria existir. Não partilho dessa visão. O Brasil não tem um ensino superior como o college, que oferece a quem saiu do ensino médio um ensino universitário generalista, que permite ir para várias profissões. Quem ocupou esse espaço aqui foram os cursos de administração e de direito, os dois grupos com maior número de escolas. Várias pessoas, ao terminar o ensino básico, fazem esses cursos, sem necessariamente querer exercer a administração ou a advocacia. Estão fazendo um curso superior e vão continuar suas vidas, no serviço público ou em alguma empresa. Mas não é porque a maioria que sai dali vai exercer outra profissão que elas não têm função social. No outro extremo, há escolas em que grande parte dos formandos passa no exame da OAB, aquelas que recebem o selo de qualidade da Ordem, 88 na última vez que vi esse número.  Elas têm um percentual muito alto de alunos aprovados no exame. Ou seja, há um grande número de escolas com poucos alunos que terão carreira jurídica, e outro, de poucas escolas, em que muitos irão fazê-lo. Entre essas que preparam a maioria de profissionais de direito do Brasil, também há clivagens. Um conjunto tem uma preocupação fundamental em dar a seus alunos formação para serem competitivos em concursos públicos. Algumas excelentes, como a Universidade de Brasília, com um programa, uma forma de avaliar os alunos que os prepara de maneira eficiente para os bons concursos.  Já a FGV tem outro perfil, voltado à formação do que chamamos de arquitetos de soluções jurídicas para problemas complexos, ou seja, pessoas mais interessadas em trabalhar em escritórios, agências reguladoras e que, mesmo quando vão para o Estado, estão mais preocupadas com o desenho da instituição. É um universo muito grande, com essas variações.

Onde somos mais bem-sucedidos?  
As principais escolas brasileiras – que são públicas – optaram ao longo do tempo por preparar as pessoas para concursos públicos. Isso é positivo, pois o Estado precisa de gente boa. O único dilema que apresenta quem tem esse perfil é que preparar a pessoa para um concurso público não significa necessariamente prepará-la para o exercício daquela função pública. O que sabemos é que serão bons passadores de concurso. Essa é uma questão essencial. Algumas escolas de direito que optaram pelos concursos são bem-sucedidas nesse aspecto, mas não necessariamente estão formando os profissionais de que o país precisa.

Isso abre oportunidade para outro tipo de formação?
Esta escola [FGV Direito], por exemplo, foi fundada num momento [2002] em que o Brasil estava passando por um processo que incluía a reforma do Estado, da gestão pública. No final dos anos 90, as agências reguladoras haviam sido criadas, o que exigia um novo tipo de advogado público. Na área constitucional, houve o surgimento de um constitucionalismo mais exploratório, criativo, com grandes opções de políticas públicas. E o Brasil começava a atuar de forma mais intensa na comunidade e no comércio internacional, o que significa que você terá problemas de tributação, regulatórios, contratos, tudo isso em âmbito internacional, uma área em que as escolas tradicionais foram mais lentas para perceber a mudança. Uma terceira área deriva do impacto que a tecnologia tem no exercício da profissão jurídica, coisas que passaram a ser elaboradas de forma sistêmica. Não preciso fazer 200 mil ações iguais, posso formular um modelo que muita gente utilizará. A tecnologia permitiu, em todo o mundo, uma divisão de tarefas do trabalho. Um exemplo: com a crise de 2008, muitas empresas norte-americanas perceberam que não fazia sentido contratar 10 mil horas de um escritório de Wall Street. Passaram a contratar mil em que faziam as perguntas essenciais, e as outras 9 mil horas passaram a contratar na Índia, onde há muitos advogados que escrevem bem em inglês. Falo isso de forma caricatural, mas o Walmart, por exemplo, faz milhares de contratos todos os dias que não precisam ser elaborados pelo mesmo advogado, com o mesmo custo. Então há uma área regulatória, uma área constitucional e uma área de tecnologia, a área internacional…

E uma área de negócios…
Muito grande. O advogado que está na área de negócios de ponta tem o seguinte desafio: precisa dialogar e compreender melhor os problemas negociais. Isso exige uma formação mais multidisciplinar. Para você ser um bom tributarista, precisa saber contabilidade como um administrador de empresa, pois vai lidar com problemas contábeis sofisticados. Se for incapaz de ler o balanço de uma empresa, não conseguirá ser um bom tributarista, nem um advogado de fusões e aquisições. A nossa preocupação fundamental era recolocar o advogado não como um mero técnico que, a partir de uma decisão tomada, no campo público ou no privado, dissesse qual o direito a ser aplicado, mas um advogado capaz de participar do processo de tomada de decisão. Se você vai comprar uma empresa, é importante que o advogado analise custos e riscos com o engenheiro e o administrador.

Que outras escolas tiveram essa percepção?
Tenho muita simpatia, por exemplo, pela Escola de Direito de Manaus, que percebeu que precisava ser a melhor escola de direito ambiental do país, pois há problemas de meio ambiente específicos lá. São escolas assim que vão se vocacionando a atender determinada demanda. Não há escolas boas e ruins, é preciso tomar cuidado com algumas hierarquias. A escola precisa ser mensurada a partir da sua ambição. Se ela tem a ambição de fornecer jovens capazes de serem membros do Ministério Público, é preciso ver se está conseguindo fazer isso.

Como vê a prerrogativa da OAB em relação à autorização de cursos de direito no Brasil?
Há uma distinção quase universal – alguns países não a fazem e estão errados – entre profissões que têm forte impacto sobre a vida alheia e outras que têm menos. O grau de interferência da American Bar Association (ABA) sobre os padrões para o credenciamento de uma escola de direito é elevadíssimo. As 220 escolas que mencionei são credenciadas pela ABA. O direito é uma profissão fiduciária. O advogado é alguém que recebe a confiança de outra pessoa para resolver seu problema. No modelo americano, a ABA tem critérios rigorosíssimos de credenciamento. É um papel de maior intervenção do que o da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). A Alemanha, por exemplo, é um país de alta regulação pelo Ministério da Justiça, que estabelece as regras para o funcionamento da profissão. As faculdades de direito são públicas, estão sob o guarda-chuva do Ministério da Educação, mas recebem essa regulação. São situações distintas. Há profissões tradicionalmente mais reguladas, o que é autorizado pela Constituição. Como houve uma explosão de cursos a partir dos anos 90, quando havia 193 escolas, a OAB passou a interferir mais no processo, o que faz de duas maneiras. A primeira é o exame da Ordem.

E em relação à autorização dos cursos?
Hoje, o pedido de abertura é feito ao Ministério da Educação. O MEC faz uma avaliação, pede à OAB uma complementação dessa avaliação, e autoriza ou não o funcionamento da escola. Uma escola que está em funcionamento tem de fazer o recredenciamento a cada cinco anos. Aí eles criaram categorias, as escolas que têm nota 5, passam simplesmente pelo credenciamento do MEC; outras passam também por uma avaliação da OAB, que não é feita de forma centralizada, é feita pelas seccionais estaduais, que têm uma comissão de ensino que visita as escolas e manda para a OAB federal, que transmite ao MEC a avaliação. O MEC vai processar a avaliação da OAB. Sem dúvida, a OAB opera muito na questão da abertura e recredenciamento de cursos.

E isso é bom ou ruim?
Se não tivéssemos 1.149 cursos, não estaríamos preocupados com isso. O país tem um número excessivo de cursos, então é razoável que a agência que regula a profissão interfira. No modelo americano, por exemplo, o Ministério da Educação não participa do processo.

Mas na Argentina é só o Ministério da Educação, certo?
Eles não têm exame. Quem se forma advogado, virou advogado, não tem regulação nenhuma. Não há obrigação de fazer parte da Ordem para o exercício da profissão. Já o Japão talvez tenha a Ordem dos Advogados mais seletiva e elitista. Do número total de formados, poucos são aprovados. Aí vão exercer uma profissão subadvocatícia. Trabalham, mas não falam com o juiz, não podem representar. Podem estar num departamento jurídico de empresas, bancos. Na Inglaterra, também há distinção, feita pelo Judiciário. E há sistemas onde isso é misto. Não existe um desenho universal. Existem jogos de interesse, tradições, ordens poderosas e outras que perderam totalmente o seu poder. Colocaria nos extremos a Ordem Japonesa – a mais exclusivista, que credencia o menor número de advogados – e a Argentina, onde basta que você faça a universidade, uma universidade aberta, e todos que se formem e queiram se inscrever entram.

Em termos de metodologia de ensino, onde há mais inovação?
O ensino tradicional, de tradição ibérica, o que mais influenciou nossos cursos jurídicos, parte das grandes generalizações e tenta fazer com que o aluno, ao se defrontar com um problema concreto, possa resolvê-lo a partir dessas generalizações. Partimos de uma noção geral do que é o direito – teoria geral do direito, teoria geral do Estado, introdução ao direito privado e ao direito público. Depois, as grades curriculares das escolas brasileiras espelham o marco legislativo. Você tem um código civil, portanto, tem um curso de direito civil, e assim por diante. Isso vem lá do século 19, quando havia um conjunto finito de leis que davam conta de quase tudo. O problema é que, especialmente no final do século 20, o conjunto de leis aumentou. Tem o Estatuto do Consumidor, do Idoso, da Criança, a legislação especial sobre internet, sobre o sistema bancário. Isso aumenta muito o leque de matérias reguladas pelo direito. As escolas tentaram acompanhar essa complexidade, o que é uma tarefa infinita.

E quem está conseguindo inovar?
As escolas preocupadas em redefinir a sua missão. A FGV redefiniu a sua: o advogado é aquele que é capaz de contribuir para a resolução de problemas complexos que existem na sociedade, seja no mercado ou no Estado, a partir do conhecimento jurídico. Nosso ensino é mais focado nos grandes problemas e na multi-habilidade que esse indivíduo tem de ter para percorrer diversos campos de conhecimento. Sintetizando ao máximo, estamos preocupados em fazer com que essa pessoa seja capaz de transformar problemas diversos em soluções jurídicas eficientes e moralmente sustentáveis.

E o que é preciso fazer para chegar aí, do ponto de vista curricular?
Problemas complexos derivam de soluções em que você precisa de vários conhecimentos – economia, política pública, contabilidade etc. Mas temos de tomar um cuidado enorme para não formar um mau contador, um mau administrador. Temos de formar um excelente advogado, que compreenda a linguagem e seja capaz de se relacionar, entender o problema que o outro apresenta e ofertar a solução do ponto de vista jurídico.

Ambiente complexo, formação complexa…
A melhor definição que ouvi para isso foi do diretor da Northwestern, em Chicago. Ele disse que cada vez mais as outras profissões – estamos falando de gente que exerce essas profissões em alto nível – precisam conhecer direito. Um cientista trabalhando com ciência de ponta precisa conhecer propriedade intelectual. Um grande administrador tem de conhecer muito sobre riscos. O advogado não é mais o único numa mesa de negociação que sabe sobre direito. Isso exige que sejamos os melhores em direito e saibamos interagir nas outras áreas. O direito não é mais o monopólio do advogado que se locupletava em saber muito direito e não saber nada das outras coisas. Hoje o advogado tem de saber muito das outras coisas, até porque os outros sabem muito de direito. Ou seja, há uma dissolução de fronteiras entre as diversas profissões.