Digitalização de conteúdos acadêmicos facilita o acesso de alunos e pesquisadores a materiais, contudo leis de direitos autorais ainda são empecilho

por Vanessa Rodrigues

191_52Ana Claudia Neri realizou seu doutorado em engenharia de mineral na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP). Sua tese, sobre tratamento de incertezas no planejamento e fechamento de minas, abrange um tema pouco comum, com número reduzido de material específico produzido no Brasil. Para Ana Claudia, a conclusão de seu trabalho só foi possível pelo amplo acesso aos conteúdos acadêmicos digitalizados e disponibilizados graças à biblioteca virtual da universidade.

“O acesso ao acervo virtual foi o responsável por mais de 90 por cento do desenvolvimento da minha tese. Sem isso, tudo teria sido mais complicado e caro. Eu teria de pagar por artigos produzidos fora do país e dificilmente teria condição de concluir minha tese com a qualidade que desejo”, comenta a estudante.

Como Ana Claudia, muitos alunos e pesquisadores estão se beneficiando da possibilidade de acessar o conteúdo digitalizado de bibliotecas nacionais e internacionais. Essa realidade representa uma tendência já comum em outros países e que está se disseminando no Brasil com mais força, com tecnologias de digitalização acessíveis e um número crescente de instituições universitárias e bibliotecas públicas disponibilizando seus conteúdos no formato digital.

A USP, por exemplo, unificou suas 46 bibliotecas mantidas por diferentes unidades em um sistema integrado, chamado de SIBiUSP, que garante o acesso a mais de seis milhões de volumes por meio do portal SibiNet. Qualquer leitor pode fazer consultas diretas ao acervo das bibliotecas e bases de dados de publicações externas, embora alguns serviços sejam restritos apenas aos estudantes e professores da instituição.

Os alunos podem acessar de forma remota conteúdos, especialmente artigos, pelos quais de outra maneira teriam de pagar, caso usassem sistemas privados. Ou, como se fazia há até bem pouco tempo, teriam de pesquisar in loco, na Europa ou Estados Unidos, o material necessário para o desenvolvimento de suas pesquisas.

A Brasiliana, outra experiência de biblioteca virtual desenvolvida pela USP, é um pouco diferente da SIBi, na medida em que nasceu com o objetivo de garantir o acesso público a um acervo digitalizado especializado em temas brasileiros, beneficiado com a doação da coleção particular do empresário e bibliófilo José Mindlin. Apesar do foco específico na biblioteca Mindlin, com mais de 40 mil volumes, entre livros e documentos raros, a Brasiliana ampliou seu escopo ao digitalizar o acervo das faculdades de Direito e Medicina da universidade, entre outras coleções. Hoje a biblioteca possui cerca de 4.500 obras digitalizadas entre livros, periódicos, ilustrações etc.

Como foi concebida desde o início para ser uma biblioteca digital, a Brasiliana usa um sistema de scanners robotizados fabricados nos Estados Unidos e que permitem a digitalização de livros encadernados e obras raras com uma velocidade maior e com menor interferência humana. As imagens são capturadas e processadas em lote para ficar mais limpas, sem manchas e com a leitura facilitada. Um software de reconhecimento de caracteres permite que a imagem seja transformada em um arquivo de formato PDF, o qual fica disponível para acesso na plataforma Corisco, criada especialmente para a Brasiliana.

A Plataforma Corisco é um sistema integrado de aplicativos e recomendações para sustentar a implantação e gerenciamento de bibliotecas digitais. Desenvolvida integralmente pela equipe da USP, foi batizada assim porque, além de um personagem brasileiro, queriam que tivesse nome de cangaceiro, refletindo a cultura do país.

Compartilhamento global
Com mais de 2.500 títulos em praticamente todas as áreas de conhecimento, a biblioteca virtual da Universidade Metodista de São Paulo (Umesp) foi inaugurada em 2010 com o intuito de suprir a necessidade de acesso a conteúdos acadêmicos dos alunos de ensino a distância. “A iniciativa deu muito certo, por isso resolvemos estender também para os alunos de ensino presencial”, explica Noeme Timbó, bibliotecária da Umesp.

Os alunos acessam por meio do portal da instituição usando login e senha previamente definidos. Os livros podem ser lidos na íntegra e ainda é possível imprimir parte do conteúdo, dentro do que é permitido pela lei dos direitos autorais.

Segundo Noeme, a implantação da biblioteca virtual foi providencial, pois atende às expectativas do perfil do aluno atual, que não tem dificuldades com plataformas on-line. “Os resultados são muito positivos, pois existe uma facilidade de acesso. O discente pode consultar a biblioteca pelo notebook, tablet e até pelo celular. Eles estão prontos para esse perfil de aprendizagem”, completa a bibliotecária.

Soluções de mercado
Um desafio para as instituições de ensino que precisam modernizar a consulta ao seu acervo é o de buscar modelos mais econômicos que permitam a digitalização do acervo de bibliotecas menores.

Para suprir a demanda por acesso a conteúdo digitalizado, diferentes empresas têm criado novas soluções de mercado. Se a instituição não tiver a capacidade ou o interesse em digitalizar seu acervo pode recorrer a iniciativas como a oferecida pela Biblioteca Virtual Universitária 3.0 (BVU), uma parceria da Pearson Brasil com 14 editoras.

Em abril último, a BVU passou por reformulações na plataforma, que agora conta com uma nova proposta visual e com formato HTML 5. Mais de 180 instituições educacionais mantêm convênio com a biblioteca virtual, garantindo o acesso a um acervo composto por cerca de 2.400 títulos, de 40 áreas de conhecimento. Além disso, os usuários também têm acesso a diversas edições do jornal Financial Times, pertencente ao grupo Pearson.

“A Biblioteca Virtual Universitária da Pear­son disponibiliza aos assinantes novos conteúdos para os livros como vídeos, imagens e animações, que enriquecem a experiência de aprendizado”, afirma a gerente de Ensino Superior da Pearson Brasil, Daniela Lopes.

De acordo com ela, um dos mais fortes diferenciais da BVU é a flexibilidade e a facilidade de acesso ao conteúdo. “O acesso é ilimitado e acontece, via internet, por meio de computadores e tablets, oferecendo ao usuário flexibilidade de lugar e momento.”

Entraves na lei
Um tema que vem à tona imediatamente quando se fala de digitalização de acervo bibliográfico é o de direitos autorais. Para contorná-lo, algumas instituições optam por investir na digitalização apenas do acervo de domínio público, evitando o problema de negociar com os titulares de direitos autorais das obras.

Segundo Maria Luiza Egea, advogada especializada em direitos intelectuais, pela legislação atual a digitalização é considerada um ato de reprodução que deve ser autorizado pelo titular do direito autoral de obra que não esteja em domínio público. O responsável pela digitalização deverá cuidar para que as obras não sejam colocadas com livre acesso na internet, assim como não deve permitir a realização de download.

“O Ministério da Cultura apresentou um Projeto de Lei para a reforma e atualização da lei que regula os direitos autorais, Lei 9.610/98, incluindo algumas limitações dos direitos de autor que irão permitir a reprodução de obras para a conservação, preservação e arquivamento realizados por bibliotecas e arquivos e a disponibilização ao público de obras intelectuais que integrem coleções e acervos para fins de pesquisa, investigação, estudo por meio de redes fechadas de informática ou pelo meio tradicional”, diz a advogada. “Se aprovado, as bibliotecas digitais serão beneficiadas por essa alteração da lei.”

O tema dos direitos intelectuais desperta um grande debate. E, no caso de quem trabalha no Brasil, as bibliotecas digitais suplementam as bibliotecas tradicionais, que ainda são muito precárias, em geral.

Acesso liberado
A Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, tem investido bastante na digitalização do seu acervo, com um foco em materiais de domínio público, como os documentos de arquivo, mapas, material iconográfico, livros, jornais, revistas e partituras. A biblioteca tem hoje 710.447 documentos digitalizados. “Para isso contamos com um laboratório de digitalização com equipamentos de alta produtividade e scanners apropriados a cada tipo de formato. Após a seleção o documento é encaminhado ao laboratório específico onde a digitalização é feita seguindo a resolução de 300 dpi e gerando um arquivo master em formato TIFF”, explica Angela Bettencourt, coordenadora da BNDigital.

A Biblioteca Nacional, que tem uma média de 350 mil acessos mensais, ou cerca de quatro milhões de acessos ao ano, também oferece apoio técnico a iniciativas de digitalização, por meio da Rede da Memória Virtual Brasileira, acessível pelo endereço redememoria.bn.br. Esse projeto congrega e apoia outras instituições interessadas em digitalizar seus acervos. As organizações participantes firmam um acordo de cooperação com a rede e passam a integrar o sistema.