MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO

INTERESSADO: Márcia Valéria Louzada

UF:ES

ASSUNTO: Consulta tendo em vista habilitação profissional de professor com licenciatura plena em Ciências Sociais

RELATOR: Nelio Marco Vincenzo Bizzo

PROCESSO N.°: 23001.000195/2003-34

PARECER N.°:

CNE/CEB 38/2003

COLEGIADO:

CEB

APROVADO EM:

03/12/2003

I- RELATÓRIO

• Histórico

A professora Márcia Valéria Louzada remeteu oficio protocolado no MEC sob o 054992.2003-46, no qual expõe sua situação profissional de professora. Com Diploma de Licenciatura Plena em Ciências Sociais, devidamente registrado em 02 de outubro de 1995, a professora tem trabalhado desde aquela época ministrando aulas nas disciplinas de História e Geografia, no ensino fundamental, e Geografia no ensino médio. Esse direito estava consagrado à época, na Portaria MEC 399/1989. A professora relata que tem enfrentado problemas para continuar a lecionar, dado que nos momentos de atribuição de aulas, no período de designação temporária, a Secretaria de Educação do Espírito Santo afirma que a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a LDBEN, teria modificado as exigências para atuação no magistério. A revogação da referida portaria ministerial agravou o quadro. Existe a dúvida não apenas que a professora seja impedida de ser designada temporariamente para atuar como professora nas disciplinas nas quais se habilitou em 1995, mas também que um eventual concurso público não permita sua participação.

A consulta em tela se reveste de especial importância dado que ela se repete em muitos lugares e que certamente ganhará dimensão jurisprudencial sobre a matéria. Existe considerável dúvida sobre questões referentes à qualificação profissional de professores em especial após a revogação da Portaria MEC 399/1989, ocorrida em junho de 1998. Os próprios sistemas de ensino tem tido orientação diversa em matéria de exigências formativas, reconhecimento de prerrogativas profissionais, atribuição de aulas e principalmente em relação à situação de profissionais que não atendem o preceituado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/96), mas que atenderam o estabelecido em legislação anterior.È comum que se pergunte se a atual legislação retroage a ponto de vulnerar os direitos dos profissionais que estão no exercício do magistério, o que justifica um estudo preliminar sobre a doutrina existente na matéria.

ESTUDO PRELIMINAR SOBRE DIREITO INTERTEMPORAL EDUCACIONAL

A questão da irretroatividade das leis remonta aos primórdios do Direito e da Lei. È quase redundante afirmar que a lei sempre foi feita para conformar os atos futuros e não os pretéritos. Este entendimento, aparentemente simplório, prevalece desde a mais remota antiguidade e constitui a base da legislação brasileira. De fato, o civilista Rubens Limongi França afirma que tão logo a República Chinesa unificou diferentes etnias há mais de 3 mil anos, houve a promulgação de novos códigos acompanhada da expressa aplicação do princípio da irretroatividade das leis (Direito Intertemporal Brasileiro, doutrina da irretroatividade das leis e do direito adquirido, Editora dos Tribunais, São Paulo, 1968, 2a. edição, p30-32).

A Referência à Irretroatividade das Leis na História

Uma lei nova, ao dispor para o futuro, não elimina os registros da lei antiga, senão faz cessar parcial ou totalmente as projeções da anterior para o futuro. Mesmo em caso de revogação, a lei extinta continua a ter aplicabilidade nos casos ocorridos sob sua vigência, porque os atos são regidos pela lei existente ao tempo em que se efetivam. Nos lembra o mestre Antônio Jeová Santos (Direito Intertemporal e o Novo Código Civil, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2003, p. 15) que esses princípios consagrados não são absolutos, dado que, no Direito Penal há retrooperatividade quando a lei penal posterior é mais benigna, caso em que prevalece a disposição posterior. Assim, desde que beneficie o réu, a lei penal será retroativa. Prossegue Jeová Santos: “Já no Direito Civil, essa simplicidade perime, é afastada. Muitas e variadas são as hipóteses em que o intérprete é chamado para explicar se a lei nova tem aplicação imediata ou se a sua aplicação vulnera um dos três sacrossantos institutos: direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada” (idem, ibidem).

O insigne jurista Limongi França, expôs sua tese de que o Princípio de Irretroatividade das Leis se funda na razão natural após extensa análise de uma plêiade de códigos, desde a antiguidade até nossos dias, no Oriente e, mais profundamente, no Ocidente, na Grécia e em Roma. No Direito Romano, antes de Justiniano, e no próprio direito justinianeu Limongo França localiza o princípio da irretroatividade e até mesmo o delineamento básico que seria estabelecido naquilo que denomina de fase científica e a codificação do Direito Civil. Nos famosos discursos contra Verres, Cícero já utilizava o princípio das irretroatividade das leis, mas Limongi França localiza como fato marcante para todo o direito do Ocidente a chamada Primeira Regra Teodosiana, do ano 393 AD.

Essa regra dizia: “Todas as normas não prejudicam fatos passados, mas regulam apenas os futuros” (op.cit. p. 53). Ela permanecerá como referencia no famoso Código Teodosiano, baixado quase 50 anos depois por Teodósio II, que editou a chamada Segunda Regra Teodosiana, nos seguintes termos, na tradução do referido autor: “É norma assentada a de que as leis e constituições dão forma aos negócios futuros e de que não atingem os fatos passados, a não ser que tenham feito referência expressa, quer ao passado, quer aos negócios pendentes” (op cit. p. 56).

Limongi França aponta para a locução latina “certum est”. que define sua tradução de “é norma assentada”. Ela indicaria que “a irretroatividade das leis já era norma definitivamente radicada no espírito jurídico dos Romanos” (op. cit. p.57). Será essa Segunda Regra Teodosiana que se inscreverá no Direito Justinianeu como princípio fundamental e que se manifestará em diversos contextos. Destacamos algumas referências do Código Justinianeu e nas Novelas que o acompanham, aproveitando sempre a versão para o português de Limongi França:

“Esta constituição convém aplicar-se, não só nos casos que se criarão no futuro mas também aos ainda pendentes, ou não resolvidos, por decisão judicial ou composição amigável” (op.cit. p. 59-60)

“Determinamos que as nossas leis que encontram nesses códigos (…) abranjam todas as causas em juízo, tanto as posteriormente iniciadas, como as pendentes e, entre estas, as que dependem quer de decisão judicial, quer de arbitramento; entretanto, de modo algum queremos ressuscitar as que já foram resolvidas por sentença definitiva ou pacto amigável.” (op.cit. p.60)

“(…) fazemos reger por esta lei a todos os negócios presentes, bem assim aos futuros, mas não aos acordos passados sobre os negócios ou controvérsias, nem às transações já feitas ou às sentenças definitivas.” (op.cit. p. 62)

“Ordenamos que assim se regulem os dotes que tenham sido outorgados ou prometidos, ainda que sem instrumento escrito, após esta lei. Os instrumentos já feitos, porém, não carecem de força, mas produzirão efeito” (op.cit. p. 62)

“Determinamos que esta constituição se observe apenas no futuro; e que os testamentos posteriores a esta Novela se confeccionem de acordo com a mesma. Pois em que se pode dizer que pecou aquele que não seguiu esta lei, quando ela ainda não era conhecida?” (op.cit.p.63)

“Que a lei de Zenon, de augusta memória, tenha efeito a partir do dia em que foi promulgada: convém que regule as leis, os fatos futuros e não traga prejuízo aos fatos passados.” (op.cit. p. 63)

“Duas disposições anteriores precedem esta lei. Primeiramente, as constituições sancionadas por nossos antecessores devem valer cada qual de acordo com o seu tempo, sem interferência da presente lei: serão válidas e respeitadas nos casos respectivos: e os seus efeitos se regularão pelas leis já promulgadas, e em nada pela presente (…) pois tudo que passou deixamos para as leis passadas, ao passo que o futuro fazemos reger pela presente lei (…) Aqueles que, confiantes (nas leis de então) entabularam negócios em nada se pode culpar de ignorarem o futuro.” (op.cit. p. 65-6).

Como síntese do direito Justinianeu, Limongi França nos apresenta quatro preceitos:

“I- A lei, de regra, regula tão somente o futuro e não o passado;

II- A lei, por isso que não se refere ao passado, não se aplica os casos pendentes;

III- A lei, excepcionalmente, pode abranger o passado e os casos pendentes;

IV- A lei só abrange o passado e os casos pendentes quando inequivocamente expressa.” (op.cit. p. 68).

O Brasil manteve estreitas relações jurídicas com Portugal desde os tempos de Colônia, utilizando a doutrina e a jurisprudência da metrópole, com raras exceções, como no caso da derrama1, no reinado de Maria I, que subiu ao trono em 1777 com a morte de D. José. Para muitos, isso pouco muda até 1917, quando entra em vigor o Código Civil de Clóvis Beviláqua de 1916. Assim, em matéria civil, Portugal mantinha entre seus preceitos o princípio da irretroatividade das leis e o respeito ao direito adquirido. Tal princípio não foi suspenso no Brasil nem com o Império, tampouco com a República, aliás, muito ao contrário.

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1 Em Portugal a existência de divida pecuniária não configurava crime, tampouco pena passível de encarceramento e esse princípio deveria valer no Brasil. A “derrama”, como foi conhecida, consolidou a prática despótica do coronel Luís da Cunha Meneses, que empregava a força militar para cobrar dividas desde sua posse como governador da capitania das Minas Gerais a 10 de outubro de 1783, o que desrespeitava ordens judiciais de magistrados como Tomás Antonio Gonzaga. Mas a posse do novo governador, o visconde de Barbacena, quatro anos depois, foi acompanhada da ordem provinda de Portugal, de cobrar imediatamente todas as dívidas atrasadas – a “derrama”. A situação confluiu para a Inconfidência Mineira, a morte de lideres e o conhecido degredo de Gonzaga em Mocambique.

Ao desatar os vínculos com Portugal, o Brasil reafirmou o respeito ao direito adquirido; da mesma forma, ao desatar os vínculos com os mandatários da família real, fundando a República, novamente, reafirmou-se o respeito aos atos praticados sob a antiga ordem e os direitos deles advindos. Maria I editou um decreto em 17 de julho de 1778, o qual suspendeu muitas leis do Reinado antecedente, mas que determinava respeito às causas findas por sentença passada cm julgado e que, em caso de recurso, a instância superior deveria julgar pela lei vigente à época em que a sentença tivera sido prolatada (Limongi França, op. cit., pág 278-9). Após analisar outras leis, em especial editadas para conformar heranças, Limongi Franca assim resume os princípios vigentes no ordenamento jurídico de Portugal no século XVIII:

“l. A irretroatividade é o princípio dominante;

II. O Direito Adquirido, ainda quando revogado, é o critério adotado pelo legislador para preceituar a retroação;

III. A retroatividade é determinada expressamente e, constantemente, por razões de ordem pública.” (op. cit, pág 280)

A Irretroatividade no Direito Brasileiro

O período em tomo da e logo após a proclamação da independência do Brasil, no qual se erigiu o Império Constitucional, é conhecido na História do Direito como “Período do Revigoramcnto das Ordenações”. Nele, nota-se que os diplomas legais são, como regra, revigorados com exceção daqueles ligados a razões de ordem pública, em especial ao erário, como aposentadorias, pensões gratificações e quaisquer despesas que não se acharem estabelecidas por Lei ou Decreto.2

A Constituição Política do Império do Brasil, promulgada em 25 de Março de 1824, ordenava, em seu artigo 179, que nenhuma lei poderia vir a ser estabelecida sem utilidade pública e que sua disposição não poderia ter efeito retroativo, texto que passou incólume pelo período da Regência. Assim, o Brasil equiparou-se à Noruega e aos Estados Unidos3, os únicos países à época que mantinham em patamar constitucional a referência à irretroatividade das leis.4

A República não só manteve como ampliou o espectro da irretroatividade das leis. O primeiro projeto de constituição republicana, escrito por Rui Barbosa, afirmava que era vedado aos estados e à União prescrever leis retroativas, texto que será consolidado no artigo 11 da constituição de 24 de fevereiro de 1891. A doutrina que irá iluminar o atual Código Civil, a lei 10.406/2002, e a própria redação da Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5, XXXVI, deriva dos constitucionalistas da época da República, como Pimenta Bueno, Rui Barbosa e João Barbalho, de civilistas como Trigo de Loureiro, Cândido Mendes e o Conselheiro Lafayette e sobretudo de Reynaldo Porchat, reconhecido por seu brilho especial sobre a matéria.

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2 Os decretos foram promulgados em períodos coincidentes com o retorno da família real a Portugal. Como ó bem sabido, a volta de fortunas e de metais nobres a Portugal abalou o Banco do Brasil, trouxe escassez de moeda e o padrão monetário passou a ser estampado em cobre. Daí deriva a expressão “passar nos cobres” e é também nesse momento que tem inicio um forte período inflacionário, dada a onda de falsificações que aumentou artificialmente o volume do meio circulante e criando um deságio para as notas impressas, que chegava a 59%. A crise culminou com o fechamento do Banco do Brasil em 1829 (Fausto, B. História do Brasil, EDUSP, SP, 1995, p. 155-6).

3 Art 97 da então Constituição norueguesa e Art 1º.§ 10 da constituição norte-americana (Toledo, C.Direito Adquirido & Estado Democrático de Direito. Landy Editora, 2003, p. 149.)

4 Embora esse fato seja reiteradamente citado por alguns juristas e seja motivo de gáudio, António Jeová Santos assinala que atualmente, com exceção da Noruega e Estados Unidos, apenas nações com democracias frágeis mantém a matéria em nível constitucional. Isso poderia ser considerado como indicador de insegurança jurídica e apreensão generalizada sobre a manutenção dos direitos civis. Esse seria o caso da Bolívia e Peru, que passaram muito recentemente por períodos de grande instabilidade política, como também do Paraguai, Honduras, Costa Rica e Nicarágua.

Rui Barbosa argumenta que a retroatividade da lei é inconstitucional quando ofende o princípio do direito adquirido. Reynaldo Porchat defendia a tese segundo a qual a lei deve ser sempre retroativa conquanto não depare, ao produzir efeitos, com algum direito que possa vir a ser lesado. Para o eminente jurista, o direito adquirido pode ser definido como posse de um estado civil definido, em função do que diz a lei, mas que ainda não foi utilizado. O direito consumado, outro conceito central para ele, é aquele que já se fez inteiramente efelivo. é um fato acabado, totalmente realizado, e a respeito do qual nada é possível reclamar senão o respeito ao que já aconteceu e que já produziu todos os seus efeitos. O exercício de um direito deriva de uma faculdade, uma possibilidade objetiva que faculta a seu titular a prática de atos jurídicos. Porchat chama a faculdade o estado de coisas que antecede o exercício daquilo que já pode ser feito em função de uma aquisição de conjunto de prerrogativas legais de seu titular. Ele fará uma distinção profunda entre a faculdade e a expectativa, definida como esperança de um direito que, pela ordem natural das coisas, e de acordo com uma legislação existente, entrará provavelmente para o patrimônio de um indivíduo quando se realize um acontecimento previsto. O indivíduo, de posse de um estado civil definido, exerce um direito, que se torna um direito consumado.

Caso não seja consumado, e apenas se for esta a diferença, o sujeito adquiriu faculdades que lhe permitem exercer o direito; este, então, é dito adquirido, porque não ainda exercido, e a nenhuma lei é dado ofender, negar ou constranger esse direito, sendo obrigatório seu reconhecimento, sob o risco de contrariar o que dizia nossa primeira constituição republicana. João Barbalho, outro constitucionalista, escreveu: Basta, para que o preceito constitucional não seja preterido, que a lei de modo algum prejudique: a) os direitos civis adquiridos; b) os atos jurídicos já perfeitos; e c) as sentenças passadas em julgado, (apud Limongi França, op.cit., p. 300). De fato, o Art. 5°., XXXVI, da Constituição de 1988 é cópia fiel do texto constitucional de 1946, em seu art. 141, §3°. Este, por sua vez, era tributário do Art. 113, n. 3, da Constituição de 1934. Esta constituição consolidava o que já estava sedimentado no Código Civil de Beviláqua, de 1916, que afirmava:

“Art 3° A lei não prejudicará, em caso algum, o direito adquirido, o ato jurídico perfeito, ou a coisa julgada.

§1°. Consideram-se adquiridos, assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele possa exercer, como aqueles cujo começo de exercício tenha termo pré-fixado, ou condição pré-estabelecida, inalterável a arbítrio de outrem. (…)”

Essa formulação, que se alinha com a robusta tradição jurídica luso-brasileira, será predominante até a Constituição de 1937, que rompeu com a tradição em diversos sentidos, e que inaugura um período que se estenderá até 1946 e no qual a certeza do respeito adquirido foi fragilizada, dado que a teoria clássica é retirada do patamar constitucional.

Para alguns juristas, como o próprio Limongi França, esse período trouxe um novo ordenamento jurídico que procurou fragilizar a tradição da irretroatividade e irretrooperatividade das leis que, nas palavras dele, trouxe “verdadeira balbúrdia” tanto para o legislador, como para o intérprete e mesmo para o cidadão. Adotou-se a Teoria das Situações Jurídicas, que tem na figura do civilista francês Paul Roubier figura emblemática5. Foi sob essa nova influência, verdadeira exceção em toda a história brasileira, que uma nova Lei de Introdução ao Código Civil (LICC) foi publicada (Decreto-lei 4657, de 4 de setembro de1942) , introduzindo a noção, em seu Art 6º, segundo a qual a lei em vigor tem efeito imediato e geral, e que a lei não atingirá, salvo disposição em contrário, as situações jurídicas definitivamente constituídas e a execução do ato jurídico perfeito. A ausência de referência ao direito adquirido e a ressalva reservada à disposição contrária são apontados como emblemáticos daquele período autoritário e que mereceu revogação com a Constituição de 1946.

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5 Limongi França chama a teoria das Situações Jurídicas de “galicismo jurídico”. A importância que adquiriu na França, nesse período e em especial com a ocupação nazista, seria uma justificativa para questionar seu significado heurístico.

É importante que se registre dois autores que escreveram sobre as regras do direito intertemporal desse período de exceção foram Serpa Lopes e Carlos Maximiliano (C. Toledo, op. cit, p. 150), o que há de despertar cautela ao se lhes aplicar regras a casos específicos, dado que na tradição luso-brasileira a teoria das situações jurídicas teve influencia muito restrita, inclusive no tempo6.

A nova LICC será promulgada apenas em 1957 (Lei 3.238/1957) e irá conjugar parte da anterior e parte do Código Civil de 1916, chegando a um resultado original, em vigor até os dias atuais e que ilumina a própria interpretação da Lei 10.406/2002. Deste código pioneiro, a LICC de 1957 reteve a tradição e respeito ao princípio de irrelroatividade das leis, sem contudo deixar de acrescentar um ingrediente original. Ao dizer que a lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada, há uma inversão na prioridade do direito adquirido, que cede seu lugar ao ato jurídico perfeito. Com isso, estabelece-se o primado dos atos consumados geradores de direitos subjetivos sobre os direitos ainda não exercidos, mas legalmente adquiridos. Esse movimento cede espaço para a aplicação imediata e geral das leis vigentes. Assim, abre-se a possibilidade de fazer valer uma lei constrangendo tradições antigas, mesmo se respeitando os direitos consumados ou adquiridos das partes.

Limongi França conclui que nossa tradição implica obrigação não apenas para o juiz mas a todos que se dedicam a editar normas e leis. Diz ele: “Esses princípios mostram, à face das mais importantes constituições da época, a particular vocação do direito luso-brasileiro, no sentido de entender que a irretroatividade civil, além do caráter privado, apresenta também o de garantia das liberdades individuais e da personalidade humana à face do Estado, razão pela qual constitui um mandamento não apenas para o juiz, senão também para o próprio legislador.” (Limongi França, op. cit. p. 127).

A recente tese de doutorado de Cláudia Toledo (2003, op. cit.) explora a intangibilidade que consagra o princípio do direito adquirido e estuda sua relação com o principio do efeito imediato das leis, em cuja complexa relação repousa o entendimento atual do conceito do direito adquirido. Por meio de hermenêutica constitucional ela retoma Limongi França e vai além, colocando a compreensão do tema nos dias atuais. Sua conclusão, é a de que no período do Império e na Constituição da República de 1891, havia a declaração da irretroatividade ampla, já que a proibiam em qualquer hipótese. Porém, o entendimento tanto doutrinário como jurisprudencial da época sempre foi no sentido de que a proibição de prescrever leis retroativas significava apenas a exigência de lei nova respeitar como limites o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Isto é, poderia ser retroativa, mas deveria ela preservar aqueles três limites impostos à sua retroação, o que equivale à noção de irretroatividade relativa (C. Toledo, idem, p. 196).

Segundo ela, essa seria a norma que obrigaria o legislador nos termos das constituições de 1824, 1891, 1934, 1946, 1967, inclusive em sua Emenda de 19697, bem como, na mesma tinha, na Constituição de 1998. A única exceção seria a constituição de 1937, típica de período de exceção que representava. representava.

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6 Segundo Limongi França, a exceção à tradição da irretroatividades das leis vigeu no Brasil apenas nos quatro anos que separam a LICC de 1942 da Constituinte de 1946. Mesmo assim, assinala ele, os doutrinadores e os órgãos judicantes não deixaram de seguir a tradição da irretroatividade (Limongi França, op. cit., p. 428)

7 Na constituição de 1967, o Art 149, IX, e na Emenda de 1969 no Art. 153, §3″ (Cf. C. Toledo, op. cit, p. 196-197)

Direito Intertemporal Educacional

Em termos modernos, faz-se necessário, ao analisar os casos relativos ao magistério, distinguir três situações distintas, mesmo se em algumas áreas elas se sobreponham.

A primeira é a de fazer valer hoje direitos legitimamente conquistados e já exercidos anteriormente à vigência da lei 9.394/96. Neste caso fala-se rigorosamente de direitos consumados (e não de direitos adquiridos), dado que eles já produziram efeitos no passado.

Neste caso, o titular do direito satisfez as exigências legais de seu tempo e conquistou faculdades jurídicas, atingindo um patamar que deve ser protegido por ação judicial, dado que há direitos subjetivos a respeitar e deveres jurídicos a cumprir. Quando o respeito ao direito não é espontâneo, ele deve ser requerido por seu titular para que se constitua uma situação jurídica (sentença constitutiva), a declaração de uma situação jurídica (sentença declaratória) ou indenização por lesão a direito (ação de reparação de perdas e danos) (C. Toledo, op. cit. p. 170). Todos os profissionais que exerciam atividades no magistério, com o devido amparo legal, não podem ser impedidos de continuar a fazê-lo sob o argumento que a lei nova carece daquilo que a antiga provia. Vulnerar os direitos legalmente constituídos diante de normas novas implica fazer retroagir a lei, prejudicando o direito subjetivo de exercício profissional, em suma, afrontar a Carta Magna.

A segunda situação é a dos casos nos quais os direitos legitimamente conquistados não satisfazem a atual LDBEN, mas satisfaziam legislação anterior, sem que tivessem sido exercidos. Neste caso fala-se rigorosamente de direitos adquiridos, pois ainda não exercidos, mas que podem sê-lo a qualquer tempo, mesmo sob uma lei nova que não os ampare. O enunciado clássico diz que o direito adquirido é consequência de fato idôneo em virtude de lei de seu tempo, embora a ocasião de exerce-lo não se tenha apresentado antes da atuação de uma lei nova e que, nos termos da lei anterior, passou irreversivelmente a fazer parte do patrimônio pessoal de quem o adquiriu.

O fato idôneo é aquele que se entende em conformidade com o quadro legal de referência. Assim, direitos adquiridos são decorrentes de ato jurídico perfeito. Este deve, simultaneamente, implicar satisfação da legalidade de maneira incontroversa, por um lado e, por outro, ser completo. Ao ato jurídico perfeito nada falta, não há o que se possa objetar da apresentação de prova inconteste de sua realização; ele decorre de contrato válido, que é realizado em boa fé, em plena conformidade com as normas que regem a matéria.

É amplamente admitido que existem áreas fronteiriças nas quais a inclusão do direito adquirido é incerta. Limongi França (op. cit, p.436 e segs.) trata de algumas delas.

Ele fala dos “direitos a termo”, como sendo aqueles que têm instante ou dia certo a partir do qual deve iniciar ou extinguir-se, com certeza, a eficácia de um ato jurídico. As expectativas de direito, por outro lado, se fundam em esperança difusa, mesmo se conformada por lei presente, mas que deve aguardar a ocorrência de um fato que se sabe futuro, o qual passa a ser fato aquisitivo quando consumado. A teoria clássica ensina que o fato aquisitivo deve se verificar por inteiro antes que se possam dizer adquiridos os direitos que os mesmos fatos são destinados a produzir. Nos diz Limongi França que a diferença entre a expectativa de direito e direito adquirido está na existência, em relação a este, do fato aquisitivo específico, já configurado por completo (idem, ibidem, p.445). A expectativa de direito mantém sobreposição parcial com o conceito de faculdade jurídica no sentido que a expectativa de um direito implica aguardar a ocorrência positiva de um fato aquisitivo específico, na falta do qual será frustrada. A expectativa se refere a algo provável; faculdade jurídica, por seu turno, é algo possível, que se apresenta como consequência previsível de um determinado ordenamento. Assim, lícito dizer que a expectativa de direito é de certa forma uma faculdade jurídica abstrata, dependente de fato aquisitivo derivado de requisitos (idem, ibidem, p.450).

A terceira situação se refere aos portadores de direitos sob condição, caso daqueles que, diante de um contexto incerto, tentam satisfazer determinados requisitos indispensáveis à complementação do fato aquisitivo específico estipulados por determinada lei. Se uma nova lei os colhe de surpresa, estabelecendo requisitos adicionais àqueles constantes no contrato inicial, existe a dúvida se o germe de direito presente naquele contrato ganhará a estatura de relação perfeita ou se será totalmente desprezado. Apesar da complexidade do tema, Limongi França se nutre de diversos jurisconsultos para demonstrar que nos casos de direito sob condição ele é esperado, mas ainda não realizado. No entanto, uma vez satisfeitos todos os requisitos, o direito se supõe ter existido desde se que deu o fato que o criou. Neste caso existe retroação que visa, justamente, proteger o direito adquirido de quem estabeleceu um contrato legal, dentro da lei vigente ao tempo.

Um estudante universitário que ingressa em um curso de licenciatura tem certeza que, uma vez tendo concluído o curso, terá direito a um diploma. Com este, poderá requerer seu registro e, assim, ser considerado habilitado ao exercício da profissão. Uma vez habilitado, o profissional tem uma esperança difusa de iniciar o efetivo exercício sob condições conhecidas apenas parcialmente quando ingressa no curso e que devem se conformar a diretrizes e bases estabelecidas pela União.

Ao ingressar no curso o estudante firma um contrato com a Instituição de Educação Superior (IES), que estipula deveres e direitos. Os deveres, afora os pecuniários no caso de instituição privada de ensino, incluem um percurso curricular planejado em função da habilitação profissional pretendida, que constitui o direito correspondente. Tanto os deveres quanto os direitos não são estipulados livremente, dado serem constrangidos por normas próprias.

Os ingressantes em cursos de licenciatura, curta ou plena, anteriormente a 1997 tinham, deveres claramente estipulados, na forma de percursos curriculares rigidamente estabelecidos, com disciplinas obrigatórias, grade curricular e mínimos horários. Tinham também direitos claramente estipulados, dado que uma norma nacional estabelecia quais diplomas habilitavam ao exercício profissional de quais disciplinas do I e II graus. Essa correspondência não era feita arbitrariamente, mas por meio de estudo do conteúdo das disciplinas obrigatórias de cada curso superior, do preparo profissional que conferiam e das necessidades didático-pedagógicas para desenvolver em sala de aula os conteúdos esperados nas diferentes disciplinas da educação básica.

Em certos casos, o percurso curricular incluía alternativas inseridas apenas e tão somente sob a justificativa de que sua carga horária ampliaria o leque de disciplinas nas quais o registro profissional poderia ser requerido. Por vezes, o nome das disciplinas era modificado sob a justificativa de que o órgão que conferia o registro profissional (MEC) assim o exigia para incluir tal ou qual disciplina na esfera de atuação do professor. Esses fatos comprovam incontroversamente que havia pleno conhecimento, de domínio público e com a devida provisão legal, das disciplinas do I e II graus para as quais o estudante obteria a licença para o magistério ao concluir seu curso, por isso mesmo denominado licenciatura.

Este contrato para a obtenção de uma licença tinha um germe de direito que ganhava estatura de relação perfeita quando todas as condições nele estabelecidas estavam cumpridas. O estudante, ao ingressar em um curso de licenciatura tem, portanto, direito sob condição para a habilitação profissional, que lhe dá a segurança jurídica de conquistar prerrogativas vantajosas caso satisfaça os pré-requisitos estabelecidos.

Uma vez formado, o cidadão deve proceder o registro de seu diploma.Na lei vigente anteriormente a 1997 os diplomados deveriam obter registro profissional (Lei 5.692/71. art. 40)8 nas Delegacias Regionais do MEC ou em sua sede. O Histórico Escolar e Diploma de Licenciatura seriam analisados à luz de normas expressas9, sendo que, para a maioria dos professores atualmente em exercício e que se formaram anteriormente a 1998, a Portaria MEC 399/1989 é a norma que atenderam, na qual estavam definidas quais disciplinas poderiam ministradas pelos portadores de tais ou quais diplomas. A certeza do registro profissional decorria da certeza do diploma.

Ocorre que em lugares distantes dos grandes centros a obtenção do registro profissional no MEC constituía tarefa assaz difícil e dispendiosa. Não raro, era necessário providenciar deslocamento até Brasília para consumar o pedido de registro, o que inibia os professores que habitavam em lugares distantes e que não dispunham de recursos para tais despesas. Com a mudança da lei, cessou a necessidade de registro profissional no MEC para o exercício profissional, que passou a se limitar ao registro do diploma. Os professores que não requereram o registro profissional à época, mas que satisfizeram todas as exigências para faze-lo, dado que se diplomaram segundo a Lei 4.024/1961, com as modificações introduzidas pela Lei 5.540/68 e Lei 5.692/1971, têm direito adquirido. Eles incorporaram irreversivelmente a seu patrimônio pessoal as prerrogativas vantajosas que decorriam do registro profissional.

Os professores que se diplomaram sob a vigência da Lei 4.024/1961, com as modificações introduzidas pela Lei 5.540/68 e Lei 5.692/1971, têm direito a ministrar aulas de acordo com o que estabelece seu registro profissional, tenha ele sido expedido ou tenha ele se incorporado ao patrimônio pessoal na forma de direito adquirido. Ao ingressarem no curso superior, os estudantes estabeleceram um contrato legal, decorrente de fato idôneo, que culminou na emissão e registro de um diploma, o que configura inequivocamente ato jurídico perfeito. Dele decorrem direitos que obrigam tanto o legislador quanto o intérprete da lei.

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8 Lei 5.540

9 Decretos-Lei, por exemplo DL 86.324, de 31/08/81, DL 91.004, de 27 de fevereiro de 1985, bem como Portarias Ministeriais, como a PM 162, de 6 de maio de 1982, PM 166, de 5 de março de 1985, PM 35, de 27 de novembro de 1985 e PM 399 de 28 de junho de 1989.

Amparados em normas expressas, como a Portaria MEC 399/1989, os professores lecionaram regularmente as disciplinas por ela conectadas a seu diploma. Assim, exerceram um direito que é dito direito consumado. A revogação da Lei 5.692/1971 e outras a ela ligadas, extinguiu a exigência de registro profissional e, assim, os profissionais legalmente habilitados nada ficam a dever para aqueles que se diplomam de acordo com a nova lei. Portanto, esses profissionais têm direito subjetivo em relação à habilitação profissional ao magistério. O respeito ao direito consumado é equivalente ao do direito subjetivo, vez que ambos são protegidos por ação jurídica.

Os professores que obtiveram seus títulos profissionais em cursos regidos pela Lei 4.024/1961, alterada pela Lei 5.040/1968 e pela Lei 5.692/1971, e que passaram a ter que atender as demandas da Lei 9.394/1996 em editais de concursos, atos de nomeação e posse e até mesmo em procedimentos de designação temporária, vivem uma situação injusta. A mudança da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional implica mudanças profundas na organização educacional. Elas nascem de um anseio da sociedade, materializado na aprovação pelo Congresso Nacional de uma nova lei que se dispõe a modificar o futuro das práticas educativas, que possam efetivamente agregar qualidade a educação – preceito constitucional – e dar conta dos novos desafios da contínua evolução do mundo em que vivemos. Para essas novas práticas são necessários profissionais com um perfil formativo diferente daquele que vinha sendo implementado. Esse novo profissional deve ser formado à custa de novos cursos, que atendam novas Diretrizes Curriculares Nacionais, mas de modo algum anulando as prerrogativas profissionais daqueles que já atuam nas escolas da educação básica e que se formaram em corformidade com as normas e leis de seu tempo.

A anulação de direitos consumados dos professores que já atuam na educação básica traria, de imediato, efeito nocivo à própria qualidade da educação. Existe mais de 1 milhão de professores atuando na educação básica, os quais têm habilitação profissional obtida em cursos que não atendem as Diretrizes Curriculares recentemente aprovadas, mas que atendiam a legislação da época em se efetivou seu preparo profissional inicial. A nova lei, anulando o que a anterior dispunha, não pode desprofissionalizar centenas de milhares de professores.

Para atender as novas necessidades formativas, a Lei 9.394/1996 demandava novas diretrizes curriculares nacionais para os cursos superiores, que efetivamente foram aprovadas apenas a partir de novembro de 2001. As novas Diretrizes Curriculares Nacionais para Formação de Professores para a Educação Básica foram baixadas, por força da Resolução CNE/CP 01 e 02/2002, apenas em 18 de fevereiro de 2002 e mesmo assim entram em vigência apenas depois de dois anos.

Ademais, a Lei 9.424/1996, enfatiza de maneira perime a necessidade de integrar imediatamente os profissionais da educação em planos de carreira, que incentivem e reconheçam a necessidade de aperfeiçoamento constante. Em seu art. 9 diz:

“Art. 9°. Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão, no prazo de seis meses da vigência desta Lei, dispor de novo Plano de Carreira e Remuneração do Magistério, de modo a assegurar:

I – a remuneração condigna dos professores do ensino fundamental público, em efetivo exercício no magistério;

II – o estímulo ao trabalho em sala de aula;

III – a melhoria da qualidade do ensino.’’

Ora, uma lei10 não pode exigir planos de carreira no prazo de seis meses de sua vigência e, ao mesmo tempo, outra lei11, aprovada poucos dias depois, desqualificar aqueles que deveriam se beneficiar com eles. Assim fosse, criados os planos de carreira até 1°. de julho de 1997, ninguém poderia a eles se candidatar, no aguardo de re-qualificação segundo normas editadas em 2002 e obrigatórias apenas em 2004. A interpretação de que a Lei 9.394/1996 suspende os efeitos da Lei 9.424/1996 fere princípios elementares do Direito e atenta contra a própria dicção do texto constitucional, quando dispõe sobre a qualidade na educação pública e gratuita (art. 206, VII).

A insistência em fazer retroagir e lei e vulnerar os direitos dos profissionais da educação, deles exigindo que tivessem satisfeito no passado as normas editadas no futuro, tem tido efeitos perversos para a educação, trazendo insegurança generalizada para alunos e famílias, dado que sua própria formação pode ser questionada, diante de seus professores não terem supostamente habilitação profissional. É inadmissível que professores que se submeteram a provas e tiveram o valor de seus títulos julgados e avaliados, e que, uma vez aprovados, tiveram o resultado de concurso homologado, foram nomeados e tomaram posse de seus cargos, tendo inclusive assumido o efetivo exercício, vejam todos os seus direitos subjetivos e consumados denegados sob o argumento que uma lei nova retroagiu no tempo e anulou diversos atos do Poder Público que não podem ser realizados sem a devida provisão legal. Ora, em 2003 foram aprovadas novas diretrizes para a duração dos cursos de bacharelado, das quais decorreram inclusive questionamentos judiciais. Acaso isso significa que um advogado em meio a uma audiência em Fórum, poderia ser colhido com a notícia que seu diploma perdeu valor porque seu curso, concluído em data anterior não satisfaz exigências posteriores? Igualmente inadmissível seria pensar que um médico pudesse ser surpreendido em meio a uma cirurgia cardíaca pela notícia que sua habilitação profissional foi anulada em decorrência de novas Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de Medicina. Além de vulnerar direitos profissionais legítimos, essa retroação coloca sob insegurança todos aqueles que dependem da atuação desses profissionais.

Se esses procedimentos são cabalmente inadmissíveis para o caso de advogados e médicos, por que não seria para o caso de professores? E possível fazer tabula rasa de tudo quanto foi disposto sobre a valorização do magistério?

Há ainda que se considerar que, na especificidade humanidades, as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental (Parecer CNE/CEB 04/98, aprovado em 29/01/98 e Resolução CNE/CEB 02/98, publicada no D. O. U. de 15 de abril de 1998) chamavam a atenção para a necessidade de ampliar o espectro teórico-metodológico e que os professores precisam de um aprofundamento continuado e de uma atualização constante em relação às diferentes orientações originárias da Psicologia, da Antropologia, da Sociologia, da Psico e da Sócio-Lingüística e outras Ciências Humanas, Sociais e Exatas para evitar os modismos educacionais, suas frustrações e seus resultados falaciosos.

Direito Intertemporal Educacional e Concursos Públicos

Uma vez considerado o aspecto do exercício profissional, cabe considerar o aspecto da participação cm concursos públicos. Se há profissionais legalmente habilitados para o exercício do magistério, de acordo com a lei da época em que se formaram, nada os pode impedir de participar de concursos públicos para o cargo de professor na atualidade.

Nos termos do Art. 48 da Lei 9394/96 os diplomas de cursos reconhecidos tem validade nacional (quando registrados) como prova da formação recebida por seu titular.

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10 Lei 9.424, de 24 de dezembro de 1996.

11 Lei 9.394 de 20 de dezembro de 1996 publicada no D.O.U. de 23 de dezembro de 1996.

Quando a lei define um requisito acadêmico para habilitação profissional no magistério ela estabelece as condições de validade de contratos. O ato jurídico perfeito emana de contratos válidos e gera direito. O Poder Público tem a obrigação de reconhecer a habilitação profissional decorrente de ato jurídico perfeito e o direito subjetivo que foi incorporado irreversivelmente ao patrimônio pessoal dos egressos de cursos profissionais.

As pessoas que foram legalmente habilitadas para o exercício do magistério por força de ato jurídico perfeito têm assegurado o reconhecimento de seu título profissional por toda a vida, tendo incorporado irreversivelmente essa prerrogativa a seu patrimônio pessoal, não podendo ser impedidos de exercer a profissão docente na esfera da habilitação específica na forma da lei. Outro preceito importante em relação ao direito se refere ao fato de ele ser incorporado mesmo se não exercido, caso em que, como vimos, é dito direito adquirido.

Todos os profissionais da educação que adquiriram a prerrogativa do magistério podem, de forma legal, participar de qualquer mecanismo de acesso a funções docentes, em especial na esfera do serviço público. O concurso público de provas e títulos é genuinamente o mecanismo de acesso consagrado em nossa Carta Magna (art. 206, V, com a redação da Emenda Constitucional 19, de 04/06/98). A LDBEN, também ressalta a importância do concurso público de provas e títulos (Art. 67,1), franqueado a todos os que estão legalmente habilitados, como via única de acesso a cargos docentes. A LDBEN chega a ser inclusive incisiva nesse ponto dado que o Art. 85. diz que qualquer cidadão habilitado com a titulação própria poderá exigir a abertura de concurso público de provas e títulos para cargo de docente de instituição pública de ensino que estiver sendo ocupado por professor não concursado, por mais de seis anos.

Professores em atuação na atualidade iniciaram seus cursos profissionalizantes sob a égide de diferentes referencias legais. Os ingressantes após o início da vigência da lei 9394/96. a tem como base e, via de regra, não há dúvidas sobre seus direitos profissionais. No entanto, os que ingressaram anteriormente à nova LDBEN, estiveram sob a influência de diferentes normas, como diversas resoluções do extinto CFE, Decretos-Lei, por exemplo DL 86.324, de 31/08/81, DL 91.004, de 27 de fevereiro de 1985, bem como Portarias Ministeriais, como a PM 162, de 6 de maio de 1982, PM 166, de 5 de março de 1985, PM 35, de 27 de novembro de 1985, e PM 399, de 28 de Junho de 1989. Assim, existe uma pletora de situações nas quais foi outorgado diploma legal para exercício profissional no magistério nos últimos 30 anos, sendo que muitos desses profissionais ainda estão em exercício. Tendo origem em atos jurídicos perfeitos, é facultada a docência em determinadas disciplinas aos portadores de diplomas, de acordo com os diferentes quadros legais aos quais estão jungidos.

Firma-se aqui, portanto, um importante preceito: a Lei 9394/96 não pode, em nenhum tempo, impedir profissionais da educação legalmente habilitados de participar de concurso público e a seu pretexto não podem ser cometidos quaisquer atos contra o efetivo exercício profissional de professores legalmente habilitados de acordo com legislações da época na qual os atos se efetivaram.

Os sistemas de ensino têm à sua disposição professores com diploma de nível médio e de licenciatura plena, ao lado de portadores de diplomas de licenciatura de curta duração (como parte de quadro docente em extinção). Cabe aos sistemas de ensino priorizar aqueles que, na forma da lei, mais contribuam para a causa da qualidade na educação por meio de normatização complementar, de acordo com o que dispõe o Art. 211 da CF e Art. 10 e 11 (entre outros) da Lei 9394/96.

Assim, o Parecer CNE/CEB 26/2000 registra:

“Como o acesso ao cargo docente na rede pública tem como via única o concurso público de provas e títulos (CF, art 206, V, LDBEN, art 67, I), é lógico supor que os professores que se submeterem a concursos públicos terão seus títulos avaliados, quando será aquilatado o valor relativo de cada título apresentado, inclusive os obtidos em programas de desenvolvimento profissional. E do interesse do profissional em particular, esteja em efetivo exercício ou não, e da educação em geral, que tais programas sejam implementados pelos sistemas de ensino..

Ao realizar concursos públicos para cargos docentes, as administrações públicas devem atentar a essas disposições legais e, ao mesmo tempo, no interesse maior da educação . È da dicção do texto constitucional que a educação , obrigação do Estado, deve ser de qualidade (CF, art 206, VII). Portanto, os professores devem ter seus títulos avaliados, quando do ingresso na carreira docente, seja por concurso ou seleção pública, no interesse maior da educação. Assim, os editais para concursos públicos devem prever a participação de profissionais que estejam em conformidade com a legislação atual, satisfazendo exigências mínimas, bem como a de profissionais que não as possuem, mas têm direito adquirido por terem satisfeito, sob outras legislações já extintas, os requisitos então exigidos. Caberá ao certame de títulos a valoração relativa pertinente, podendo conferir valores diferentes às diferentes modalidades de formação, inclusive diplomas não mais expedidos atualmente(licenciaturas curtas), mas que conferiram a seus portadores, à época, direito à docência.

Dessa forma, editais de concursos públicos devem conter uma parte referente ao certame de títulos, no qual serão aquilatadas as diferentes credenciais apresentadas e sua validade segundo os quadros legais de referência. Caso o edital não preveja a participação de algum tipo de profissional legalmente habilitado, os cidadãos que se considerarem lesados devem, antecipadamente à realização das provas, pleitear o direito de inscrição, na forma legal, por requerimento especial ou, se não respondido ou denegado, por via judicial.

Assim, registrando o fato de o possuidor ter credenciais distintas das previstas no edital, ele deixa claro que não cumprirá literalmente todos os itens do edital, mas assume compromisso com o conteúdo de seu pleito, apresentando a credencial que declara possuir

Os profissionais que não tiverem pleiteado à época própria o direito de participação no concurso, não poderão faze-lo após a realização do referido concurso. Para atos de nomeação e posse a autoridade competente, no exercício de sua função pública, está compelida a exigir as credenciais solicitadas no respectivo edital previamente à realização das provas, quais sejam, as que implícita ou explicitamente os candidatos declararam possuir, inclusive em petição específica

• Conclusão

O estudo que acompanha este parecer teve a intenção de fundamentar a postura doutrinária de respeitar o direito daqueles que satisfizeram as exigências legais de seu tempo e se habilitaram profissionalmente. Esses profissionais não podem ser impedidos de assumir encargos docentes ou mesmo de participar de concursos públicos sob o argumento de que uma nova lei estabelece novas exigências, ou que a norma que conferia habilitação foi extinta. As leis e as normas anteriores permanecem sendo a referência para aqueles que satisfizeram inteiramente as exigências colocadas ao tempo em que se efetivaram os atos.

A Portaria MEC 399/1989 dizia que os portadores de diploma de licenciatura plena em Ciências Sociais poderiam obter registro profissional para ministrar História e Geografia no então I Grau e Geografia Humana no II Grau. Isso é o que consta nos registros profissionais de quem os requereu quando eram expedidos e, para aqueles que não o fizeram, trata-se de direito adquirido. Este é o caso da professora Márcia Valéria Louzada.

O espírito da nova LDBEN é a de fazer com que os antigos especialistas se aproximem uns dos outros, possibilitando não apenas a aprendizagem disciplinar de seus alunos, mas abrindo novas perspectivas de maneira a incentivar o contato de diferentes áreas do conhecimento e as novas aprendizagens dele decorrentes. Assim, de acordo com a nova lei, seria difícil entender que um professor com licenciatura plena em Ciências Sociais pudesse ser considerado menos preparado para o ensino de humanidades em uma escola de ensino fundamental do que alguém com licenciatura plena em História ou Geografia.

Caberia ressaltar conclusivamente que se os egressos de cursos de licenciatura plena em Ciências Sociais, de acordo com a lei velha, estavam habilitados para o magistério de História e Geografia no ensino fundamental, diante da lei nova eles têm um perfil formativo que satisfaz ainda melhor as exigências das Diretrizes Curriculares Nacionais que vigoram desde abril de 1998 para o ensino dessas disciplinas.

II – VOTO DO RELATOR

Voto no sentido que a professora Márcia Valéria Louzada, portadora do diploma de Licenciatura Plena em Ciências Sociais registrado em 1995, tenha reconhecido seu direito ao exercício profissional nas disciplinas História e Geografia no ensino fundamental e Geografia no ensino médio, para todos os efeitos e particularmente para Designação Temporária. Diante da relevância da matéria para os sistemas de ensino, voto no sentido de remeter este parecer aos Conselhos Estaduais de Educação, por meio do Fórum Nacional dos Conselhos Estaduais de Educação, aos Conselhos Municipais de Educação, por meio. da União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (UNCME), ás Secretarias Estaduais e Municipais de Educação, por meio do Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED) e União dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME).

Brasília(DF), de 03 dezembro de 2003.

Conselheiro Nelio Marco Vincenzo Bizzo – Relator

III – DECISÃO DA CÂMARA

A Câmara de Educação Básica aprova por unanimidade o voto do Relator.

Sala das Sessões, em 03 de dezembro de 2003

Conselheiro Francisco Aparecido Cordão- Presidente

Conselheiro Nelio Marcol Vïcenzo Bizzo- Vice-Presidente

Consulta tendo em vista habilitação profissional de professor com licenciatura plena em Ciências Sociais.